“Eu tenho algo a contribuir, fazer essa situação ser vivida de um jeito menos sofrido, de um jeito mais partilhado, que seja”

 

por Pedro Guilherme Costa

Arredores do Instituto de Psicologia da USP. Foto: IPUSP/ Divulgação

 

Com mais de 2223 clientes com o registro finalizado e 206 atendimentos em aberto atualmente, o PAPO (Projeto de Apoio Psicológico Online), do Instituto de Psicologia (IP), é um dos maiores projetos desse estilo na USP. Seus mais de 190 colaboradores habilitados no atendimento online já ouviram muito do momento pandêmico de diversas pessoas, alunos, professores e funcionários ligados à universidade.

Mas o que é esse projeto em si? Suas origens? E principalmente, quem são as pessoas por trás dessa rede de acolhimento? Em entrevista ao JC, a psicóloga Paula Fontana, uma das coordenadoras do projeto, aborda essas questões e expõe a sua voz em um atendimento em que tanto se escuta.

Primeiro Dra. Paula, pode por favor se apresentar?

Meu nome é Paula Fontana Fonseca, eu sou psicóloga no Instituto de Psicologia da USP. Eu trabalho lá no Instituto no vínculo/serviço de psicologia escolar. Então tradicionalmente eu vinha desempenhando um trabalho muito mais ligado a essa interface da psicologia com a Educação. Pesquisa, formação, extensão: nas três grandes áreas da universidade. [Paula também possui experiência clínica e na saúde mental, acrescentou].

Quando sai a pandemia, quando ela acontece, e a gente [do Instituto de Psicologia] se viu em teletrabalho, algumas coisas aconteceram ao mesmo tempo que precipitaram a formação desse projeto, que se chama Projeto de Apoio Psicológico Online (PAPO). Tinha uma preocupação do Instituto, claro que uma ou outra pessoa encabeçou essa preocupação, mas tinha uma preocupação que circulava no Instituto em como manter um espaço de acolhimento para o sofrimento psíquico, que a gente percebeu muito intensificado por essa condição de isolamento, afastamento social e também essa incerteza toda que a pandemia trouxe.

Coisas muito cotidianas como ir ao mercado, deixaram de ser espaços acolhedores. Aquele espaço que você vai e não precisa nem pensar no que você está fazendo, aquele que você já conhece. Os ambientes conhecidos ficaram inóspitos. E a nossa casa virou um tudo.

Então foram várias preocupações que fizeram com que um grupo do Instituto de Psicologia buscasse um desenho que sustentasse um projeto de atendimento nesse período de pandemia. A gente entendia logo no começo que era um projeto transitório. Se você for lembrar, no começo eram “quinze dias de quarentena, quarenta dias, talvez 3 meses”. Esses prazos foram se alargando, mas no primeiro semestre do ano passado ninguém pensava que pudesse durar o ano inteiro, dois anos, imagina!

Perfeito, acredito que podemos seguir para a segunda pergunta. Agora, pode me contar como foi a sua trajetória pelo PAPO?

Nesse momento inicial, me envolvi logo de cara com o projeto, algo que a gente percebeu que muitas pessoas se envolveram. Falo por mim, mas muitos dos meus colegas se envolveram também, por conta de uma vontade de dar um sentido, de poder dizer “eu tenho algo a contribuir, fazer essa situação ser vivida de um jeito menos sofrido, de um jeito mais partilhado, que seja”.

Cada um queria dar sua contribuição. Então claro coincidiu de eu ser psicóloga no Instituto de Psicologia, ter essa preocupação do IP e uma motivação pessoal, de buscar contribuir com a nossa sociedade, com o que a gente vinha vivendo de tão difícil. Eu estou falando por mim, mas vejo que isso foi uma marca para os psicólogos que vieram compor conosco esse trabalho, especialmente nesse momento inicial.

No dia 2 de Abril de 2020, estava com o projeto de apoio psicológico online, abrindo. A gente começou a ofertar ali. Então você imagina que foi mais ou menos uns 15 dias de muito trabalho, ninguém nunca tinha formalizado um trabalho online, nenhum de nós. A gente tinha feito uma reuniãozinha ou outra, algo mais pontual.

Tanto é que a gente promove ainda, mas na época isso estava sendo construído, um curso para os colaboradores que chegavam para participar do projeto e uma das coisas que a gente ensinava era como marcar uma videoconferência no Google Meet como compartilhar a tela, etc. Para nós mesmo, a gente também foi conhecendo. Hoje em dia, nós navegamos com alguma tranquilidade.

A senhora pode comentar sobre a rotina do projeto e a sua experiência com ela?

O PAPO teve duas grandes inspirações: uma foi o plantão psicológico (área em que o IP possui muita tradição) e a outra inspiração são as consultas terapêuticas que já vem do campo da psicanálise. O projeto congrega muitas vertentes de trabalho do instituto, o que cotidianamente pode ocorrer em paralelo. O projeto acabou possibilitando que a gente fizesse uma espécie de rede de cruzamento dos interesses e pontos em comum que a gente tinha e se beneficiou disso.

O nosso projeto tinha essa premissa de estar muito permeável para o cliente que precisasse do nosso trabalho, que viesse nos buscar. A gente montou o projeto pensando em fazer uma estrutura que permitisse que o nosso psicólogo colaborador estivesse amparado pela instituição e estivesse bastante disponível para o cliente que nos procurasse. A gente tentou sustentar essas duas pontas ao mesmo tempo, que para o cliente fosse acessível, de fácil acesso. [Além disso, buscaram também focar na agilidade e na disponibilidade do atendimento online, completou Paula].

Então a gente montou um Google Forms, que tem algumas perguntas que a pessoa preenche contando um pouco do que ela está vivendo nesse momento. E a gente tem um formulário para o psicólogo colaborador que também conta da sua disponibilidade: que horários ele consegue atender, se tem algum tipo de situação que pela formação dele, que ele se dê mais inclinado a atender. Por exemplo, questões ligadas à escolarização remota, questões de convivência familiar, questões relacionadas a luto. A gente tinha alguns tópicos que imaginamos que no momento da pandemia seriam mais importantes.

A partir do recebimento dos dois Google Forms, a equipe do PAPO recebe e faz o alinhamento dos interesses de ambos os lados. A gente busca tanto a afinidade de tempo quanto a afinidade temática.

(Por mais que o PAPO possua uma secretaria, que atua na intermediação, Paula conta que há uma tentativa do projeto em pessoalizar o atendimento o mais rápido possível, colocando o(a) psicólogo(a) responsável para conversar diretamente com o paciente pelo e-mail. Uma vez isso marcado entre o paciente e o psicólogo, eles possuem autonomia para prosseguir com os atendimentos).

A gente montou também uma estrutura de formação que possui duas propostas: uma é o formato mais tradicional de aula e a outra é um espaço de supervisão online. A supervisão é um clássico na formação da Psicologia, é um espaço em que o psicólogo ou o aluno de Psicologia que está fazendo algum tipo de atendimento tenha algum tempo para levar as questões do seu atendimento e poder ser escutado por um supervisor, alguém que tem mais experiência do que ele naquele tipo de trabalho.

No começo a gente tinha 4 horários distribuídos ao longo da semana, e o colaborador poderia vir para compartilhar algum atendimento ou escutar a discussão, porque as duas coisas são formativas. É a oportunidade de escutar um pouco o que o colega está vivendo, o raciocínio clínico dele, ter um supervisor que aponte alguma direção. Enfim, abra algumas situações que parecem mais opacas e quando começamos a falar vemos outros ângulos da mesma questão, do mesmo problema.

A estrutura do PAPO é muito inspirada no Plantão, na ideia de ter uma disponibilidade para o que pode chegar do paciente. Ou seja, para que a gente como psicólogo esteja disponível para aquilo que não fazemos ideia do que vai ser, precisa ter um contorno institucional, uma rede de atendimento efetiva.

O PAPO possui algum paciente que se consulta desde o início do projeto?

A gente tem uma proposta de que seja um atendimento pontual, essa é uma inspiração do projeto. O que isso se reflete em termos de informação: a gente costuma pensar em até 3 atendimentos, pode se prolongar um pouco mais, um pouco menos, mas temos esse parâmetro. Eu costumo dizer que o enquadro institucional dispõe as peças de um jogo, ele é o tabuleiro no qual a gente vai conseguir jogar. Mas as estratégias não são reféns, não são condicionadas totalmente pelo tabuleiro.

Não temos alguém que esteja em atendimento esse período todo, por conta da estrutura dos atendimentos pontuais. O que a gente teve foi pessoas que voltaram a procurar o projeto mais de uma vez. Porque o PAPO não é que você usa ele uma vez e não pode mais retornar, e nós até dizemos isso.

Com o encerramento do ciclo, há uma costura feita com o paciente daquele problema que está inquietando ele. Mas se em outro momento aparecer alguma outra questão, alguma outra coisa mexer no seu cotidiano e você precisar da gente de novo, pode voltar. E efetivamente algumas pessoas buscaram a gente já, até umas 5 vezes, o que também é muito próximo da ideia de plantão.

A pessoa vem e ela tem um acolhimento ágil, começa até a pensar naquela questão com uma outra pessoa e possui um encaminhamento, não no sentido de seguir em um outro espaço, mas uma direção para que a pessoa possa seguir a partir dali.

Logo no começo, próximo a Maio, percebemos que eram muitas informações, eram muitas as questões, e um volume muito grande de gente procurando o projeto, ou para ser atendido ou para ter algum tipo de consultoria porque queria montar algo similar na cidade em que atuava. Ou até mesmo de psicólogos mesmo que foram se organizando autonomamente para oferecer um espaço como esse. E a gente percebeu que especialmente para os nossos colaboradores, ficavam só os atendimentos e as supervisões, fazendo com que eles perdessem um pouco o pé do projeto. Que desenho é esse? Onde estou inserido?

Então a gente montou um boletim, bem a sua área! Com o objetivo de circular algumas informações do projeto, o boletim no início era semanal, no comando do então mestrando André Bezerra. O boletim divulgava as nossas supervisões, os horários abertos de supervisão, etc. A gente sempre escolhia uma pauta, então era o tema daquela semana que a gente ia enfatizar no boletim.

Podia ser alguma espécie de comemoração, como “já temos tantos psicólogos inscritos” ou “já foram tantos atendimentos realizados”, ou algum tema que tenha sido mais sensível naqueles dias. E também temos uma coluna chamada pílula literária, que era a ideia de um respiro. Era importante ter a informação mais técnica, conhecer o projeto, saber o que a gente estava fazendo, mas também a gente queria que os colaboradores pudessem ter um momento de descanso, aquilo em que eu vou me inspirar também para a minha atuação como psicólogo.

Depois o André deu a sugestão que a gente transformasse isso em uma página. Hoje os temas são mais esporádicos. Por exemplo, quando chegam as férias, há um comunicado explicando o funcionamento do projeto nesse período.

Voltando para uma pergunta mais pessoal, a senhora lembra de alguns momentos marcantes nessa trajetória? Podem ser bons ou ruins. Não precisa citar nenhum nome, claro. 

Eu acho que foi muito marcante essa energia de início. A gente trabalhava 24 horas, e você vai dizer assim, você não dormia? Não, claro que eu dormia, mas eu acordava pensando no projeto. E não era só eu. O grupo de WhatsApp que a gente formou dialogava o tempo inteiro. Às vezes eram 23:00 da noite e alguém estava colocando algum comentário. A gente até brincava falando “gente, alguma hora a gente precisa descansar”, porque foi o inverso, um excesso de trabalho. O curso que a gente dava ia de 20:00 às 22:00 e a equipe ainda fazia uma conversa depois.

Então, foi uma proximidade de repente de trabalho, de uma energia que juntou a gente. De muito trabalho, mas também de muito entusiasmo dentro daquele contexto difícil demais que foi Março-Abril. Algumas pessoas que são muito parceiras do projeto, com quem eu criei uma intimidade de trabalho nesse período, eu só conheço virtualmente.

A gente fez, acho que no final do ano passado, se não me engano, uma celebração online. E o professor Pablo Castanho tem todo um trabalho com o Sonhar Grupal. E a gente propôs fazer esse projeto com quem quisesse partilhar essa experiência do PAPO. E foi um momento muito bonito, de construção coletiva e de reconhecimento dessa construção que a gente tinha feito ao longo do ano passado. 

E foi engraçado porque teve essa coisa emocionante, de a partir dos sonhos de cada um, poder tecer algo. De uma conversa daqueles sonhos, para a gente pensar o que tocava a cada um e o que tocava aquele coletivo que estava ali. E depois a gente fez uma comemoração mesmo, algumas pessoas deram o testemunho de como estava sendo, a importância, e foi muito caloroso.

E tem pessoas que eu só conheci online e me sinto muito próxima. Então pra mim, tenho isso de muito especial. De como a gente conseguiu construir uma proximidade em um momento em que as palavras de ordem eram distanciamento, isolamento. Mas a gente pôde fazer uma inflexão e criar uma proximidade nesse contexto.

E a minha última pergunta é: Como está sendo o projeto nos últimos tempos? Está tendo muita procura?

[Paula começou a responder essa pergunta com um pequeno esquema de fatores-chave].

3 fatores que coincidem no aumento da procura pelo projeto:

  1. O calendário escolar da universidade;
  2. Eventos disparadores de sofrimento;
  3. Notícias e divulgação do projeto. 

O projeto é direcionado à Comunidade USP, que já é muito grande, então foi necessário fazer esse recorte. A gente teve a procura de todos os setores, mas teve um aumento muito grande esse ano de pessoas mais jovens. O que faz a gente entender que são alunos de graduação, pessoas com até 22 anos, muitas vezes até dos anos iniciais.

É uma característica desse ano, diferente do ano passado. Ano passado isso não estava tão desenhado assim, era mais misturado, as idades, as categorias. Claro que os alunos costumam buscar mais do que os professores, mas a gente professor que buscou, teve funcionário.

Alunos da psico também atuam no projeto, com grupos de supervisão destinados a graduandos. Essa formalização dos alunos aconteceu a partir do segundo semestre do ano passado. Mas é decisivo, para uma ter uma pertinência institucional mesmo e poder participar disso que nos preocupa em termos de comunidade USP.

Como essa instituição tão grande e importante a qual eu tenho tanto respeito muitas vezes também se impõe sobretudo aos graduandos que às vezes não se sentem pertencendo a Universidade.

Para finalizar a entrevista, a Dra. Paula informou que no momento o PAPO está contando até mesmo com uma lista de espera para atendimento. Por conta disso, uma das primeiras mensagens quando se vai procurar o projeto é um direcionamento para uma ação semelhante da Saúde do Estado de São Paulo, o Programa Autoestima. Esse parceiro do PAPO explora diversas áreas do atendimento psicológico, e o encaminhamento para ele é oferecido como mais uma via de acolhimento para aqueles que estão precisando do PAPO no momento.