Volta às aulas?

Como está/fica a situação das unidades e da própria USP após a determinação de volta presencial

 

 

por Iasmin Rodrigues e Isabella Marin

Foto: Iasmin Rodrigues/JC

 

A Universidade de São Paulo (USP) decretou, em 13 de março de 2020, a suspensão de suas aulas a partir do dia 17 do mesmo mês. Agora, aproximadamente um ano e cinco meses depois do decreto, a Reitoria da Universidade divulgou uma portaria declarando o retorno das aulas presenciais no início de outubro de 2021. 

Em março de 2020, a expectativa era de que após duas ou três semanas a Universidade voltaria ao habitual. No entanto, a pandemia perdurou por mais tempo que o esperado e toda a comunidade uspiana teve que transformar suas vidas em um contexto de isolamento social e ensino remoto.   

Dentre 25 unidades da USP que atenderam a essa matéria, apenas oito das 25 unidades optaram por não retornar ao presencial. Entre elas, a Escola de Comunicações e Artes (ECA), o Instituto de Psicologia (IP), a Escola de Engenharia de Lorena (EEL), a Faculdade de Direito (FD), a Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o Instituto de Ciências Matemáticas e Computação (ICMC) e o Instituto De Relações Internacionais (IRI). 

Enquanto isso, 13 unidades da USP decidiram que irão voltar às aulas presenciais. Algumas delas, como o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), a Faculdade de Odontologia (FO) e a Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) farão o retorno apenas para atividades práticas laboratoriais ou em campo. A Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), por outro lado, relatou que o ensino será “misto”, ou seja, os alunos terão acesso aos prédios e laboratórios e os professores darão aula presencialmente, mas ficará a critério do aluno assistir no local ou de forma virtual. O restante das unidades relataram que estavam seguindo as normas da portaria e não deram maiores detalhes sobre a volta. 

As demais unidades afirmam  ainda estar em processo de decisão com as comissões e grupos de trabalho destinados ao assunto.

Artes: Iasmin Rodrigues/JC

 

Retorno presencial

As portarias que dispõem sobre o retorno ao ensino presencial foram divulgadas no mês de agosto de 2021. O primeiro comunicado que chegou à comunidade foi a GR Nº 7670, no dia 12 de agosto. Em seu artigo terceiro, o reitor declara que “o retorno das atividades presenciais de graduação será obrigatório para todos os alunos imunizados, a partir do dia 4 de outubro próximo” e que serão observados os protocolos de biossegurança e as regras definidas tanto pela Pró-Reitoria de Graduação quanto pela unidade. Os parágrafos seguintes mencionam que a prioridade seria destinada às aulas práticas e outras atividades definidas pela unidade. As aulas teóricas poderiam continuar de forma remota ou de maneira mista.

A portaria GR Nº 7671, divulgada uma semana após a anterior (19/ago), incluiu novas diretrizes para o retorno presencial. De acordo com o documento, docentes, pesquisadoras, servidoras técnicas e administrativas, alunas e estagiárias que sejam gestantes devem permanecer afastadas, ainda que estejam completamente imunizadas, “enquanto perdurar a emergência de saúde pública de importância nacional decorrente da Covid-19.”

A outra inclusão do documento que causou comoção na comunidade uspiana é a de que “excepcionalmente, por absoluta e inadiável necessidade local do serviço ou de natureza acadêmica, os docentes, pesquisadores, servidores técnicos e administrativos, alunos e estagiários poderão, a critério dos Dirigentes das Unidades, retornar imediatamente ao trabalho presencial e às atividades acadêmicas presenciais, desde que tenham recebido a primeira dose da vacina”.

A Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e a Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) seguiram a mesma decisão da USP e decidiram retomar as aulas presenciais ainda neste ano. A UNICAMP decretou a volta para suas atividades presenciais, assim como a de seus servidores, estagiários, voluntários, patrulheiros, residentes, integrantes de programas de pós-doutorado, pesquisadores, professores colaboradores, pesquisadores visitantes convidados e participantes de programas da Universidade no dia 13 de setembro. Até o presente momento, não foi divulgada a resolução específica para discentes. 

Já a UNESP, por sua vez, estabeleceu que a retomada ao presencial é aceita desde que o município que sedia a unidade tenha uma taxa de reprodução do vírus e uma taxa de ocupação de leitos de UTI de acordo com as diretrizes. Além disso, as atividades podem ser mantidas remotamente a critério da direção da unidade.

Comunidade USPiana

Em resposta aos atos da Reitoria, com a gestão de Vahan Agopyan-Antonio Hernandes, um manifesto foi aprovado em plenária dos três setores da Universidade — docentes, discentes e funcionários. Segundo o documento, a medida é precipitada e a USP não apresenta condições para o retorno planejado. Além da iminência da variante Delta que vêm ocasionando novos picos da doença em outras partes do mundo, as cidades com campus da USP ainda não atingiram o percentual sugerido pelos epidemiologistas de 70 a 75% de população completamente imunizada. 

Os setores também alertaram para os casos de mortes diárias pela Covid-19 no estado de São Paulo e a percepção errônea de que a vacinação é um “passaporte individual”. Isso se deve porque, mesmo com a vacinação, as pessoas ainda podem desenvolver a doença (em casos graves, virem a óbito) e transmiti-la. “Entendemos que a reabertura promovida pela Reitoria coloca em risco a vida da comunidade universitária e, tão grave quanto isso, contribui para o descontrole mais geral da pandemia nas cidades em que a USP está inserida”, diz o manifesto.

Além desses questionamentos, a plenária levantou pontos como a falta de infraestrutura no retorno, como o transporte público lotado e a possibilidade de contato com pessoas que não cumpriram o isolamento. A atual presidente da Adusp, Michele Schultz Ramos, relatou em entrevista ao Jornal do Campus que outra preocupação da comunidade são os protocolos sanitários e encaminhamentos inexistentes para casos de adoecimento. Schultz, que também é professora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) e Pós-Doutora em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), comenta que não há um procedimento a seguir para mapear as pessoas que entraram em contato com o contaminado e as medidas a serem tomadas.

Por essa razão, o Comando dos 3 Setores da USP elaborou um documento-base para construção de planos sanitários e educacionais nas unidades e campus da Universidade, em vista da segurança da comunidade. 

A professora ainda relata que houve reuniões separadas com as APGs (Associação de Pós-Graduandos), DCE (Diretório Central dos Estudantes), Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP) e Adusp antes da divulgação da segunda portaria, em que foram apresentadas reivindicações e preocupações quanto aos cuidados no presencial, mas que não foram consideradas pela Reitoria. 

“Isso nos deixa perplexos. Parece que a universidade nega o conhecimento produzido pela própria universidade. Podemos até chamar de negacionismo na própria universidade. Isso não somos nós, entidades, que estamos dizendo. São nossos colegas que estão estudando o assunto, publicando e trazendo dados. É decepcionante, no mínimo”, declara a presidente da Adusp.

Aliado a isso, Schultz comenta que a liberação prematura para a volta às aulas presenciais na USP pode gerar um impacto negativo na sociedade em geral. “Se muitas das pesquisas [sobre a Covid-19] e pesquisadores vêm da USP e a mesma libera o retorno, passa uma sensação de que está tudo bem e as pessoas se sentem mais seguras. Mas quando estamos falando de campanha de saúde pública, temos que ir sempre ao máximo que der. Falamos de higienização, uso máscaras e distanciamento já sabendo que muitas pessoas não vão fazer.”

Para a presidente da Adusp, é necessário defender com afinco a democracia nas universidades, algo que fica esquecido muitas vezes quando a defendemos no campo geral. Ela também pontua que, com os recentes atos da Reitoria, fica evidente a não  participação da comunidade nas decisões que dizem respeito aos grupos que compõem a Universidade. Segundo Schultz, existe um flerte com o autoritarismo por parte da Reitoria. 

Foto: Iasmin Rodrigues/JC

 

Representantes discentes e do Sindicato

Apesar de ser compreensível a vontade do retorno às aulas presenciais, estudantes e funcionários também trazem críticas à maneira como isso foi realizado pela Reitoria. A primeira crítica diz respeito à falta de transparência e diálogo nas decisões. 

Alguns dos representantes discentes procurados pelo Jornal do Campus evidenciam essa queixa. “As informações chegam de cima para baixo, decididas pelo reitor, pelo vice reitor, sem um diálogo prévio. O diálogo acontece com a crise em torno do tema” diz Tales Mançano, estudante do terceiro ano de Ciências Sociais da FFLCH e representante discente na unidade. Ele chama essa atitude de “política de cima para baixo” e explica como ela é quase sempre falha. “[A decisão] é feita de uma maneira tão mal pensada que é pouco plausível que de fato dê certo. Ela ignora uma série de complexidades, mesmo que ela se pense bem intencionada.”

Nessa mesma linha, outra representante discente, Isadora Nunes Ferreira, estudante de Gestão de Políticas Públicas do quarto ano na EACH, comenta como o começo da ideia de retorno foi nebuloso. Dentre os motivos para essa incerteza, a falta de diálogo foi apontado como um dos mais importantes. O que os alunos sabiam eram apenas rumores. “Isso causa um clima de pânico nas pessoas, se você não tem essa comunicação efetiva com os estudantes, com a comunidade acadêmica. Essa comunicação de fato não aconteceu.” Ela conta que a representação discente enviou ofícios à diretoria da EACH e uma carta aberta a toda comunidade da EACH. “A partir do momento que a gente tornou a discussão aberta, trouxe os estudantes para conversar, colocou os pontos da representação discente de forma muito clara para todos os setores da EACH, nós vimos um clima muito mais calmo” conta Isadora. Ela completa dizendo que após isso a diretoria da unidade anunciou que não haveria a volta presencial este ano, e a comunidade ficou mais tranquila. “Comunicação é a chave de tudo”. 

Conforme apontado por ambos, muitos estudantes não estão preparados para a volta presencial feita de modo abrupto no meio do semestre letivo. O medo da contaminação pela Covid e da transmissão da doença para familiares é apontado pelos representantes como uma das principais causas para a relutância dos alunos quanto ao retorno. Dentre os estudantes, nem todos estão completamente imunizados, sendo que vários aguardam a data da segunda dose. Tales também comenta que esse medo aumentou com a disseminação da variante Delta no país. “Imaginar uma volta presencial é imaginar uma contaminação bastante significativa do corpo discente, dos funcionários, dos professores, o que é um grande caos”.

Fora o medo da contaminação, há também um fator material e de planejamento do ano letivo a ser considerado. Tales explica: “As pessoas precisam se organizar. Elas não se matricularam pensando que elas vão ter de ir em aulas presenciais. Elas se matricularam em um momento muito específico que elas podem assistir aulas gravadas, que fizeram todo um planejamento distinto”. Ele dá o exemplo de uma estudante trabalhando na França atualmente e, apesar de ser um exemplo extremo, é um indicativo de que vários alunos talvez não tenham condições de voltar tão imediatamente. Nessa mesma linha, Isadora completa: “A maioria das pessoas voltou para a casa dos pais. Não tinha condições de pagar o aluguel para uma casa que não estava morando mais”. Isadora também explica que, no caso da EACH, essa situação é agravada devido ao fato da unidade não contar com alojamentos estudantis para os alunos. “Voltar no meio do ano letivo é uma coisa que não faz nenhum sentido. Só mostra essa pressa [da Reitoria]. Seria uma volta mais política do que técnica,” lamenta a representante. 

Não apenas os alunos se queixam do retorno presencial no atual momento e da maneira com que a Reitoria da USP comunicou a decisão. Vânia Ferreira Gomes Dias, enfermeira, que trabalha na Escola de Enfermagem da USP e é membro da diretoria do SINTUSP (Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo), fala como os trabalhadores da USP tem sentido muita falta de participação no processo de tomada de decisões desde o início da crise sanitária. Ela conta que, desde março do ano passado, “a USP começou a tomar medidas no sentido de transformar o que fosse preciso para encarar esse novo momento. Ela nunca fez isso de modo discutido ou dialogado com os trabalhadores e me parece que não fez com os alunos e não fez com os docentes”. 

No caso dos servidores técnico-administrativos, o grupo do qual Vânia faz parte, a situação foi ainda mais emblemática pois eles não tiveram a mesma paralisação. “Os servidores técnico-administrativos foram obrigados a continuar cumprindo seus expedientes de maneira presencial por algum tempo, simplesmente para mostrar que havia alguém lá trabalhando presencialmente” ela conta, expondo como as vidas desses servidores foram pouco valorizadas em comparação com os alunos e professores. 

Vânia conta como essa não é a primeira vez que a Reitoria tenta, de maneira compulsória, fazer a volta do trabalho presencial dos servidores técnico-administrativos. Em um desses retornos, a Reitoria tentou criar um esquema de “bolha sanitária” o mesmo usado em 2020 pela NBA nos Estados Unidos para terminar o campeonato de basquete. “Daí a gente dizia ‘nossa, o que é que tem de semelhança com os atletas da NBA e os trabalhadores da USP?’. Foi até motivo de chacota em alguma medida,” diz a profissional da saúde, comentando o absurdo que era essa comparação.

Risco de transmissão no campus 

De um ponto de vista epidemiológico, Vânia aponta que o número de casos da Covid-19 e de mortes pelo coronavírus tem diminuído bastante por conta do avanço da vacinação não só em São Paulo, mas no país inteiro. Entretanto, ela ressalta que, dos estudos feitos e das experiências dos outros países, o retorno em massa às atividades só seria seguro com 70% da população completamente vacinada. Ela explica o porquê:  “Você teria chances menores de transmissão. O vírus está e ainda estará circulando, mas quando ele encontra uma pessoa vacinada, ali já é uma primeira barreira para seguir essa disseminação”. Vânia ressalta como as autoridades da USP parecem adotar medidas sanitárias gerais de redução da transmissão, como o uso de máscara, o distanciamento social e a higienização com álcool em gel, como se essas fossem capazes sozinhas de conter o avanço da pandemia. “Existem muitos pesquisadores na USP que estão nessa área e que não foram consultados”.

Vânia comenta como há, de fato, pessoas querendo retornar às aulas presenciais, porém com uma volta acordada com todos os setores, não apenas vindas por portarias da Reitoria. Ela diz que os funcionários estão “reivindicando um plano sanitário de retorno, mas um plano sanitário que seja construído com a participação ampla da comunidade USP, inclusive daqueles pesquisadores e especialistas que estão trabalhando nessa área”.

A educação em meio a pandemia

Uma das principais — senão a principal — alegação para o retorno principal é o déficit educacional que o ensino à distância causa. As aulas por vídeo chamadas, produções gravadas e falta de atividades práticas levam a uma desmotivação geral nos alunos e isso tende a ocasionar um impacto negativo na formação desses profissionais.

O slogan “A USP não para” é irresponsável ao desconsiderar o árduo período que discentes, funcionários e docentes estão passando durante a pandemia na tentativa de manter suas atividades. A professora da EACH, Michele Schultz, comenta que é um absurdo classificar o ensino remoto durante a pandemia como um sucesso, pois esconde os problemas reais. 

Para Schultz, uma solução para o problema é reconhecer que existe o déficit e planejar como compensar o que vem sendo perdido no EAD. “Quando eu digo que foi o possível nas circunstâncias que a gente tem e não foi um sucesso, estou admitindo que há perdas. Quando falamos das condições educacionais, deveríamos pensar o que fazer para recuperar esse provável déficit na formação dos estudantes. Deveríamos estar pensando nessa perspectiva pedagógica educacional, e não está sendo feito. Eu acredito que enquanto não tiver seguro para comunidade e famílias, não podemos defender o retorno presencial”, declara a professora.

Foto: Iasmin Rodrigues/JC