Mortes por suicídios provocam debate sobre saúde mental na USP

Para além do setembro amarelo, a universidade deve permanecer com atividades de suporte emocional aos alunos

por Filipe Albessu Narciso

Arte: Filipe Albessu Narciso/FreeImages e Publicdomainpictures

A comunidade USP foi acometida pelo suicídio de três estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) no ano de 2021: todos entre os meses de maio e junho. Dentre eles, a morte por suicídio de um aluno de geografia morador do Conjunto Residencial da USP (CRUSP) reacendeu um debate sobre a efetividade das ações da universidade direcionadas aos membros de seu corpo discente, em especial daqueles que são minorias ou de origem periférica. Um ato-cortejo foi organizado por outros moradores do CRUSP em homenagem a Ricardo Lima dois dias após seu falecimento.

Em 2018, a USP já havia passado por outro indíce expressivo de mortes por suicídio, após o registro de quatro casos em um mesmo período de dois meses. À época, foi criado o Escritório de Saúde Mental, a primeira ferramenta unificada de assistência psicológica da instituição. 

De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), a prevenção ao suicídio deve ser uma prioridade pelos próximos 18 meses após a pandemia da covid-19. Isso ocorre porque, para além do suicídio já ser uma das mais relevantes questões de saúde pública da atualidade, a pandemia pode exacerbar fatores de risco ligados ao comportamento suicida. O estudo One Year of Covid-19, realizado pelo Instituto Ipsos para o Fórum Econômico Mundial, apontou que 53% dos brasileiros entrevistados acreditam em um declínio de sua saúde mental em relação ao início da pandemia.

Atualmente, a comunidade USP se prepara para um retorno às atividades presenciais. A instituição deve estar atenta a atividades e medidas possíveis que priorizem o debate sobre o suicídio e a situação da saúde mental dos estudantes a fim de manter-se na prevenção do suicídio.

A continuidade da prevenção

O setembro amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio iniciada no Brasil em 2015 focada em promover conscientização para a população. “A questão da prevenção [ao suicídio] não é pontual”, esclarece a professora sênior do Instituto de Psicologia (IP) da USP Maria Julia Kovacs. Para ela, é essencial compreender o suicídio enquanto fenômeno multifatorial e de grande complexidade para promover medidas eficazes de prevenção, sendo também necessário compreendê-lo como um fenômeno que necessita de consideração constante durante todo o ano. “O mês de setembro tem as luzes, mas é preciso falar o ano inteiro sobre o assunto”.

 Fachada do Congresso Nacional recebe iluminação amarela para o dia mundial de prevenção ao suicídio. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A professora aponta o suicídio como um indicativo de condições de grande sofrimento e vulnerabilidade. Nos últimos anos, o fenômeno tem crescido entre a população jovem do mundo inteiro: o suicídio é a terceira maior causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos. No Brasil, o número de mortes por suicídio aumentou em 28% entre os anos de 2014 e 2019, segundo levantamento da insurtech brasileira Azos — sendo o maior aumento dentre os jovens.

“A primeira ação a ser realizada é conversar com estudantes, funcionários e docentes para realizar um mapeamento de questões que afligem a comunidade USP”, afirma Kovács. Cobranças excessivas, competição, situações de desigualdade, adaptação a uma nova realidade, humilhação, questões raciais e outros fatores são condições que podem de maneira conjunta desencadear um impacto na saúde mental e ocasionar a ideação suicida. Outras situações de estresse, como desemprego, instabilidade financeira e isolamento da sociedade são potenciais gatilhos decorrentes das transformações da pandemia de Covid-19. Para a professora, é relevante criar espaços de comunicação para analisar e reconhecer situações de vulnerabilidade.

Para o comunicador e fundador do Instituto Gente Feliz Anderson Mendes, a comunicação é uma ferramenta significativa na prevenção ao suicídio. Ele afirma que atividades preventivas como disseminar informações e se informar sobre o fenômeno do suicídio, promover a escuta qualificada por profissionais de saúde e abrir espaços de debate sobre questões de perda, de luto e da morte são de grande relevância. “Tanto o fenômeno do suicídio quanto dos transtornos mentais são desencadeados de forma multifatorial. Portanto, a solução também passa por multifatores”, reforça Mendes.      

A prevalência de ambientes técnicos e impessoais que se distanciam da compreensão da situação e do bem-estar do outro é um empecilho para a manifestação de uma socialização saudável. O espaço universitário possui a tendência a ser afligido por essa condição. A humanização do ensino superior associada à presença de profissionais ou entidades responsáveis pela mediação de conflitos e pelo acolhimento é uma forma consciente de combater a solidão da impessoalidade. 

 Entretanto, essa humanização não é um objetivo simples de ser atingido. Historicamente,  a universidade é símbolo de dominação e a entrada de indivíduos periféricos ou que fazem parte de minorias raciais, sexuais e de gênero faz com que sejam defrontados por um ambiente, muitas vezes, hostil e pensado em um molde elitista, caucasiano e cisheteronormativo. 

A professora Maria Júlia Kovacs ressalta a importância de reconhecer a autonomia e a visão única do indivíduo quanto ao suicídio e as adversidades da vida. “O suicídio é uma história a ser contada e quem a conta é quem está com ideações suicidas”, ela comenta. Anderson Mendes enfatiza como pessoas transitando no espectro do suicídio perdem a esperança em si mesmas e na sociedade como um todo e que, a partir da informação e do acolhimento, é possível reverter esse quadro.   

Além do Escritório de Saúde Mental, a USP possui outras atividades e organizações engajadas em oferecer atendimento psicológico aos estudantes. A psicóloga Paula Fontana Fonseca, coordenadora do Programa de Apoio Psicológico Online (Papo) ofertado pelo Instituto de Psicologia da USP, foi entrevistada recentemente para o Jornal do Campus para falar sobre o projeto. Em outros casos, unidades e câmpus possuem ofertas próprias de atendimento e assistência, como o Centro de Orientação Psicológica (Copi) do campus de Ribeirão Preto. 

A pósvenção quando necessária

Termo criado pelo suicidologista Edwin Shneidman, a pósvenção é o nome dado a uma série de ações de intervenção que visam a minimizar em um sobrevivente enlutado as sequelas de uma morte por suicídio. Familiares, amigos e pessoas próximas podem ser abatidas por fortes sentimentos e pensamentos distorcidos ao tentarem processar o evento, além de poderem se ver presos em uma tentativa de compreender as “reais motivações” do suicídio. A pósvenção é criada com o intuito de promover uma redução dos danos provenientes da tragédia dessas mortes.

Dentre as atividades de pósvenção é considerada especialmente a capacidade de influência do fenômeno e a força do denominado efeito contágio. Em indivíduos vulneráveis, o suicídio possui um forte apelo como último recurso para escapar de situações de sofrimento e, por essa razão, a mídia e outras formas de divulgação devem considerar não apenas o respeito pelos enlutados, mas também o potencial de motivação, influência que a divulgação equivocada e simplista do fenômeno pode ocasionar.

É igualmente essencial considerar o impacto que o suicídio possui na vida dos denominados tentantes do suicídio e para as pessoas próximas desses indivíduos. Oferecer atendimentos psicológicos a familiares e conhecidos é importante, pois muitos apresentam dificuldade de compreender o pensamento suicida. “Muitas vezes os cuidados com pessoas que tentaram suicídio são de uma violência ímpar”, aponta Kovacs. Por vezes, essas pessoas que já estão em situação de grande vulnerabilidade são tratadas de forma violenta por pessoas próximas incapazes de compreender sua situação, o que torna o fenômeno ainda mais complexo para todos que são afetados por ele.

Foto: Bruno Cecim/Ag.Pará

Uma das emoções que costumam atingir com maior força os enlutados por uma morte de suicídio é a culpa. Eles podem acreditar em uma culpabilidade irreal de que eram totalmente responsáveis pela vida do ente querido, dificultando o processo de reconciliação do luto. Anderson Mendes também pontua como, em algumas ocasiões, tentantes do suicídio optam por culpar os outros por seus insucessos e sofrimentos. Existe, portanto, um grande desafio na compreensão do fenômeno do suicídio em relação ao seu aspecto multifatorial ligado a fatores biológicos, psicológicos e sociais. 

Para Kovacs, a criação de lugares de cuidado é de muita relevância para a prevenção ao suicídio. Dentre as intervenções recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para prevenção, estão: (1) a limitação do acesso da população a meios para o suicídio, (2) a garantia de que a mídia divulgue informações sobre o tema de maneira consciente, (3) o fomento a habilidades socioemocionais em adolescentes e (4) a identificação, a assistência e o acompanhamento dos indivíduos afetados pelo comportamento suicida. Ao trazer a discussão para a comunidade USP, Kovacs deixa claro sua perspectiva de que a Universidade necessita de mais contratações a fim de criar mais espaços de acolhimento. Um dos exemplos que ela menciona é o de acompanhamento no Hospital Universitário para aqueles que tentam o suicídio, pois muitas vezes essas pessoas tem o tratamento descontinuado. “Ainda há muito a ser feito”, expressa a psicóloga.

O setembro amarelo possui uma função essencial de dar ênfase ao valor da vida. Entretanto, é necessário considerar que pessoas em grande sofrimento e com vidas miseráveis devem receber efetivamente formas de assistência e melhora em sua qualidade de vida. “Precisamos discutir que vida estamos propondo para as pessoas”, reforça Kovacs. “Não deveríamos discutir essas questões só quando há um suicídio ou quando é o setembro amarelo”.

Onde procurar ajuda

O Centro de Valorização da Vida (CVV) é uma associação civil sem fins lucrativos que presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção ao suicídio. O CVV garante sigilo e anonimato total para aqueles que querem e precisam conversar. O site da associação disponibiliza um chat online, e-mail e endereço para contato. A associação também atende por telefone pelo número 188.

O Escritório de Saúde Mental da USP está realizando atendimentos online, via Google Meet, e pode ser contatado pelo e-mail escritoriodesaudemental@usp.br 

O Instituto de Psicologia também oferece atendimentos à toda comunidade USP pelo Programa de Apoio Psicológico Online (Papo)

Para o campus de Ribeirão Preto, o Centro de Orientação Psicológica (Copi) oferece atendimento psicológico e pode ser contatado pelo e-mail copi.pc@usp.br.

O Núcleo de Acolhimento Universitário oferece serviço aberto à comunidade da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) e utiliza o e-mail nau-each@usp.br.
Para os moradores da capital São Paulo, o Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) está localizado na rua Major Maragliano, 241, Vila Mariana, São Paulo, e atende pelo telefone (11) 3466-2100. A cidade de São Paulo também conta com uma rede de 97 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que trabalham sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento. A rede de CAPS no município de São Paulo pode ser consultada aqui.

Essa reportagem foi originalmente publicada com o título: “A prevenção continua”