Como o PL 490 pode afetar a demarcação de terras indígenas?

 

Arte: Luana Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

   

Por Mariana Marques

Recentemente, o Projeto de Lei (PL) 490/2007, voltou a ser discutido na Câmara dos Deputados. O PL busca alterar o processo de demarcação dos territórios indígenas, estabelecendo, entre outras coisas, a data de promulgação da atual Constituição (5 de outubro de 1988) como um Marco Temporal necessário para que a terra seja oficialmente reconhecida como indígena.  O projeto ignora a violência sistêmica que os povos indígenas brasileiros sofrem para preservar seu modo de vida e desconsidera o processo histórico de expulsão de indígenas de seus territórios de origem.

O Jornal do Campus conversou com Julia Feitosa, aluna da ECA-USP e integrante do coletivo estudantil Levante Indígena. Na entrevista, Júlia comenta como o PL afetaria o processo de demarcação de terras e como os povos indígenas têm se articulado para impedir esse retrocesso na conquista de direitos.

Antes de tudo Julia, você pode se apresentar?

Meu nome é Julia Feitosa, eu sou xucuru-kariri. Meu povo é de Palmeira dos Índios, uma cidade no interior de Alagoas. Eu sou estudante de Artes Cênicas na USP, da turma 019. Eu componho o movimento Levante Indígena dentro da universidade. Esse foi um coletivo estudantil que surgiu justamente para debater muitas pautas indígenas dentro da faculdade.

A gente tem alguns parceiros externos e temos um advogado que acompanha o nosso coletivo que é não-indígena. Mas é um coletivo composto por pessoas indígenas e a nossa pauta principal é conquistar dentro da USP o vestibular indígena, que já existe na Unicamp e na UFSCar, mas que ainda não teve início na maior universidade de São Paulo.

Eu componho também a comissão organizadora do ENEI, o Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas, que é composto por vários povos do Brasil.  A gente organiza um encontro anual para debater as pautas gerais com os mais velhos também. Não só pautas da Universidade, mas dos nossos povos.

Coletivo Levante Indígena no Acampamento Levante Pela Vida (ATL).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O PL 490 modifica, entre outras coisas, a maneira como os territórios indígenas serão demarcados. Como a demarcação funciona hoje em dia e como o marco altera esse processo?

 O modo de demarcação de terras que a gente tem hoje aqui no Brasil funciona da seguinte maneira: um povo declara ter ocupado originariamente certo território. Isso surge do próprio povo, do próprio indígena, pois a partir da Constituição de 1988 nós temos autonomia jurídica e política. No sentido de podermos falar com a nossa voz, já que antes disso tínhamos que ser representados por não-indígenas. 

A partir dessa demanda do povo vem o processo demarcatório – quando profissionais como antropólogos, historiadores e profissionais da área de geografia vão para esse território e fazem um estudo. Esse estudo leva em consideração a fala dos mais velhos, dos Anciões, para saber a história daquele território e também a análise, por exemplo, de artefatos que declaram que aquele povo existiu ali.

Só que para demarcar a terra hoje, não precisamos comprovar que estávamos lá numa data específica. Então vamos supor que há um território hoje que o meu povo não ocupa há muitos anos porque foi expulso, mas que ancestralmente era nosso. Hoje é permitido que esse tipo de situação aconteça, o Marco Temporal quer mudar exatamente isso porque ele quer especificar uma data em que o povo tinha de estar lá.

Então se o seu povo por algum motivo, como perseguição religiosa, saiu do seu território e na data de 5 de outubro de 1988, quando fizeram essa Constituição, não estava lá, ele não tem mais direito àquele território. Só que quantos dos nossos povos estão há muito tempo longe dos seus territórios? É um absurdo isso, pois nós (indígenas) temos direito originário à terra, não a partir de 1988.

O Marco Temporal também impediria o aumento da extensão das terras indígenas que já estão demarcadas. Podemos supor que meu povo lutando, conseguiu demarcar só uma porcentagem do nosso território, caso o Marco Temporal seja aprovado a gente não consegue aumentar o nosso território. E o nosso povo aumenta, porque a gente está crescendo. Como é que o meu povo vai aumentar e o território não? É esse tipo de situação que o Marco Temporal coloca.

A discussão sobre o Marco Temporal não é nova, e a versão original do projeto de lei debatido atualmente é de 2007. Porque, na sua opinião, essa discussão voltou à tona agora, em 2021?

Tanto a teoria do Marco Temporal quanto a PL 490 são processos antigos. A PL 490 começou  em 2007, no governo Lula. Primeiro de tudo: o presidente era outro. O projeto já era do interesse completo da bancada ruralista, mas não foi para frente, ficou arquivado.

Já no Governo Bolsonaro as pesquisas mostram que a violência dentro dos territórios indígenas aumentou em disparada. A invasão de territórios indígenas por garimpeiros e fazendeiros, a  exploração dos recursos de forma ilegal, a queimada, etc., tudo aumentou drasticamente. A gente vê que há um interesse do governo atual em focar nisso com intensidade. Tanto é que teve a fala daquele lá (Ricardo Salles) falando de “passar a boiada”.

Primeiro é o contexto do governo atual tanto como presidência, como os interesses da bancada, segundo a reação dos povos indígenas. Porque quando a violência começou a aumentar, quando o cerco começou a fechar, os povos começaram a ir para as ruas, tanto perto dos seus territórios, como na cidade fechar BR e ir para Brasília. Foi uma necessidade. A partir do momento que a gente começa a se mostrar, as pessoas começam a nos ver mais.

Um dos artigos do projeto de lei que está sendo discutido assegura a presença das Forças Armadas e da Polícia Federal nos territórios indígenas sem consulta prévia às comunidades que vivem nelas. Como você enxerga isso? 

Alguns políticos que são a favor do Marco Temporal dizem que se a gente continuasse tendo a liberação de extensão de terras indígenas de novas demarcações, a demarcação seria infinita e em algum momento a gente dominaria o Brasil. Isso logicamente não iria acontecer. De 1988 até agora a gente não conseguiu nem metade da demarcação que deveria ter sido feita. Nós sabemos quais são os nossos direitos e quais são os nossos territórios.

Eles não enxergam os territórios indígenas como pertencentes ao povo indígena. Nossos territórios não são propriedades privadas. Não temos, por exemplo, o direito de compra e venda registrada de nenhuma terra indígena. Só que um dos motivos da demarcação indígena é justamente manter a preservação de um território para o bem comum. Porque sabemos que a demarcação de terras é responsável pela existência desses territórios de maneira intacta ou quase intacta. Porque nós conseguimos viver em uma terra sem explorar, sem acabar com ela.

O que o Governo Bolsonaro alega é justamente que “para o bem comum da sociedade, esses territórios precisam ser explorados”. Se ele enxergar que naquele território existe alguma fonte econômica que vai beneficiar algum interesse, que ele diz ser da sociedade, mas que sabemos que são dos grandes empresários, indústrias, fazendeiros e garimpeiros, eles querem ter o direito de explorar esses recursos.

Só que é justamente para isso que o indígena tá vivo, para impedir que acabem os recursos. Fica um conflito de existência, de ideal e de ideologia de modo de vida. Acho que é mais ou menos isso. Eles querem entrar nos nossos territórios para explorar, para retirar o que tem. Só que o que se tira do indígena, está tirando da sociedade inteira. Pois esse território vai deixar de existir e a riqueza natural deste território também.

Existe um conflito de visão do que é preservar, manter e conviver com a natureza entre os ideais que vem da sociedade capitalista, das grandes indústrias, da bancada ruralista e por aí em diante, com as visões dos povos originários. A legislação pode servir para atender tantos interesses desse outro lado, mas na verdade deveria defender os interesses do bem comum da sociedade em geral.

Marcha das Mulheres Indígenas [Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil]
Como estão as expectativas do Levante Indígena quanto aos resultados da votação e como o coletivo está se mobilizando contra o PL 490?

Nós do Levante estamos participando ativamente como um coletivo estudantil. Nos unimos ao ENEI como Coletivo Estudantil Nacional da Região Sudeste, formado pelos estudantes indígenas das faculdades daqui. Nós estivemos em Brasília, durante as manifestações, na marcha das mulheres (Marcha Nacional das Mulheres Indígenas) e depois participamos do fórum dos estudantes, em Brasília, e nós fomos também.

Estamos participando da agenda de mobilização nacional e em ações mais locais, como a produção de texto-divulgação, para conscientizar as pessoas que estão ao redor da universidade. Principalmente através das redes sociais, para falar sobre o que está acontecendo em uma visão diferente do que as grandes mídias estão apresentando.  Temos nossa página no Instagram e no Facebook do movimento Levante Indígena onde a gente tenta contrapor o discurso que a massa tá fazendo das nossas manifestações e dos nossos posicionamentos.

Quais os tipos de repressão que os movimentos indígenas têm sido vítimas durante as manifestações contra o PL 490?

Bom, teve os casos de repressão policial direta, que aconteceram nas manifestações em junho. Saíram até nas televisões, teve repressão direta com spray de pimenta,  gás lacrimogêneo e pancadaria ali na frente da Esplanada, onde estava o acampamento. Depois, quando teve o Acampamento Levante Pela Vida (ATL), em setembro, não houve repressão direta, mas teve uma pressão psicológica muito grande durante os dias do acampamento, com alguns tipos de tentativa de desmobilização.

No primeiro dia de marcha de onde estávamos acampados até o local de manifestação dispararam uma informação falsa de que tinham invadido o acampamento e estavam queimando as comidas e batendo em quem tinha ficado lá. Foi uma informação falsa que na hora fez com que metade do pessoal voltasse correndo para o acampamento. E depois vimos que tinha sido uma tentativa de desmobilização, para que a gente saísse da concentração.

E durante o acampamento havia muitas pessoas infiltradas. Não sabemos a origem e intenção delas, mas elas estavam lá. Pessoas que vinham tanto para agredir verbalmente quanto para causar confusão e que não faziam parte do movimento indígena. Bolsonaristas apareceram para nos agredir verbalmente.

Quando teve a Marcha das Mulheres, que é outro movimento, mas estava incluindo a pauta do PL, teve mais intensidade ainda entre os bolsonaristas. Eles inclusive se reuniram como grupo, não eram mais pessoas isoladas, para oprimir as manifestações. Fazendo uma pressão psicológica para que os parentes fossem embora. Nosso coletivo não ficou sabendo de nenhuma repressão direta. Vimos muita pressão psicológica, manipulação de informações e tentativas de difamação do movimento.

E como você acredita que a comunidade estudantil universitária em geral, e da USP em particular, pode se mobilizar em defesa dos direitos indígenas?

Um dos meios de acompanhar a luta é, pelo menos, se conscientizar sobre a luta, acompanhar pessoas indígenas, nossas falas e posicionamentos. Porque a gente não está escondido, né? A gente está nas redes sociais, na televisão. Estamos em todos os cantos falando, basta querer ouvir e enxergar. Primeiro é acompanhar pessoas indígenas pelo meio que a pessoa tiver.

O segundo meio seria apoiar. Tanto essa luta que está tendo agora, quanto nas lutas em geral dos povos indígenas. Temos a nossa luta principal, a demarcação de terras. Sempre foi, porque sem a terra não tem povo, não tem como manter a cultura. Mas temos outras demandas também e as pessoas podem acompanhar.

A comunidade universitária tem muito como contribuir nisso. Porque a universidade é formadora de opinião, tanto formadora de opinião dos estudantes, das pessoas da comunidade acadêmica, quanto nós da comunidade acadêmica somos formadores de opinião fora da universidade.

Mas isso nos leva para vários níveis (de discussão). A universidade quase não tem professores indígenas. Acho que é uma coisa que deveria ser uma preocupação da universidade. Quando a gente pensa e debate dentro da universidade que tem que ter pluralidade é ética, e é por isso que existem as cotas, geralmente se exclui os povos indígenas.

A cota PPI não funciona para os povos indígenas, é uma cota que leva em consideração muito a questão do fenótipo e não é o nosso modo de identificação. E muitas vezes, o indígena é colocado como pardo, e nós somos indígenas.

São várias as pautas que a universidade precisa colocar e não coloca. Os movimentos estudantis também não. O nosso movimento indígena tem muita dificuldade de conseguir alianças dentro da faculdade. Justamente por essas diferenças de visão e de luta que existe com outros coletivos.

São coisas que a gente precisa conversar muito em roda. Temos um espaço na USP que é pouco conhecido, a Casa de Culturas Indígenas que fica na frente do Instituto de Psicologia, onde fazemos rodas de conversa. A gente às vezes tenta divulgar, isso antes da pandemia, e convidar os estudantes, mas às vezes a gente tem dificuldade de atingir um número grande de pessoas. Os estudantes da USP têm, por exemplo, o Movimento Anti-Fraude de cotas, e seria interessante se a gente recebesse esses convites, já que estamos abertos para participar ativamente das discussões, pois eu sei que existem visões diferentes.

Existe mais alguma coisa que você queira falar para a comunidade uspiana?

Bom, já que estamos falando diretamente com os estudantes, vou mandar um recado interno em nome do Levante. Não ignorem que existem indígenas dentro dessa universidade. Abram espaço para as nossas pautas, nossas falas e acompanhem o movimento Levante Indígena. Nós estamos abertos e procuramos espaços para poder estar falando e construindo junto com os estudantes e professores e toda a comunidade acadêmica. Porque a nossa responsabilidade dentro de uma universidade não é só interna, né? Não é só sobre as questões estudantis, mas são sobre o mundo. Porque a nossa faculdade está aí, os profissionais estão aí, para servir o mundo.

O que eu tenho para dizer é isso: que nós indígenas estamos lá, mas estamos em uma quantidade muito pequena. E a gente precisa de apoio para aumentar o acesso indígena na universidade, porque isso é sobre a nossa sobrevivência e a manutenção dos nossos territórios também.