O Costume do enterro no Brasil e seus impactos ambientais

O aumento de mortes ocasionadas pela pandemia acende a discussão sobre sepultamentos e o risco que os cemitérios podem oferecer ao ambiente.

por Cadu Everton

                  Foto: Alex Pazuello/Semcom

No Brasil, culturalmente a forma mais comum de se despedir de uma pessoa após o seu falecimento é por meio do sepultamento.  Devido à pandemia da covid-19, velar o corpo de um ente querido não foi possível para famílias que perderam alguém para a doença. Nas mídias, as cenas que mais chocaram os brasileiros foram imagens de covas em massa sendo abertas nos cemitérios dos mais diversos cantos do país. Tudo isso devido a alta quantidade de mortes causadas pelo novo coronavírus. Entretanto, essas tristes imagens revelaram não somente a letalidade do vírus, mas também como no Brasil opta-se por enterrar os corpos de pessoas falecidas.

Diferentes povos na antiguidade já tinham a cultura de enterrar pessoas falecidas, como os gregos e os egípcios. Mas a tradição do enterro no Brasil tem origem na cultura judaico-cristã. O povo hebreu tinha o costume de sepultar os mortos, o que foi posteriormente adotado pela Igreja Católica que passou a realizar os sepultamentos dentro das igrejas. Porém, devido à peste negra no século XV, as igrejas não puderam comportar tantos corpos, adotando a utilização de enterros em cemitérios. A tradição do enterro foi adotada pelos países colonizados por europeus, sendo uma prática fortemente adotada não somente em território nacional, mas em todo o Ocidente.

No Brasil, grande parte dos cemitérios foram construídos sem nenhuma preocupação sobre seus impactos no meio ambiente. Os primeiros estudos realizados no país aconteceram no início da década de 1980 pelo Cepas USP (Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas da Universidade de São Paulo), com o intuito de comprovar cientificamente o potencial risco de contaminação das águas causado pela presença de cemitérios, haja vista que grande parte dos locais de sepultamento no país foram construídos antes de existir qualquer legislação ou preocupação com os impactos ambientais.

O corpo humano após a morte se torna um resíduo que entra em decomposição. A putrefação do corpo por parte das bactérias forma o necrochorume, líquido formado por água, sais minerais e substâncias orgânicas.  Em conversa com Fernando Saraiva, pesquisador do Instituto de Geociências da USP, um corpo adulto é capaz de produzir, em média, 40 litros de necrochorume em um período de um a dois anos. “O enterro de um animal em um terreno isolado causa impactos muito restritos, mas imagina, nesse período pandêmico, 300 pessoas sendo enterradas por dia em um cemitério público de São Paulo? Você possui uma quantidade muito grande de corpos em um local delimitado, ou seja, concentra a quantidade de resíduos no solo”, afirma o pesquisador.

A principal preocupação com a penetração do necrochorume no solo é a contaminação de lençóis freáticos. O líquido resultante da decomposição contém bactérias, vírus e até substâncias químicas medicamentosas ingeridas pela pessoa falecida. Tudo isso pode chegar às águas subterrâneas e contaminar plantações irrigadas ou casas abastecidas por meio de poços artesianos. Apesar dos cemitérios serem construídos em locais afastados da área urbana, o crescimento de muitas cidades ocasionaram o englobamento  desses locais que passaram a ficar próximos de prédios e residências.

                    Manaus em maio de 2020. Sepultamentos de pessoas de baixa renda, no cemitério N.S. Aparecida.                              Foto: Fernando Crispim/Amazônia Real

O pesquisador do Instituto de Geociências da USP salienta que cemitérios adequadamente implantados e geridos são apenas um risco potencial, mas não causam impactos efetivos no meio ambiente e na saúde pública. “Os cemitérios, assim como a indústria, trazem riscos ao ambiente, é necessário monitorar a qualidade física, química e biológica do aquífero freático na área interna e externa dos cemitérios para identificar quais os impactos que estão sendo causados pelo seu funcionamento na localidade”, salienta Fernando Saraiva.

Em abril de 2003, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) lançou a resolução n°335 que regulamenta o licenciamento ambiental de cemitérios.  Entre as regulamentações estão a proibição de instalação cemiterial em Áreas de Preservação Permanente; exigência de sepulturas com distância mínima de um metro e meio acima do nível mais alto dos lençóis freáticos, além de materiais que impeçam a passagem de gases para os locais de circulação de visitantes e trabalhadores. 

Entretanto, nem sempre as normas do Conama são seguidas. Cemitérios particulares conseguem atender com mais efetividade às normas, enquanto os públicos, por trabalharem com menos verbas e terem uma demanda maior, principalmente nas periferias, não seguem todas as normas especificadas na resolução n°335. 

O sepultamento é o procedimento fúnebre mais utilizado no país e sua explicação está na herança da colonização portuguesa. Apesar da implantação de cemitérios ser antiga e ainda bastante utilizada, Saraiva acredita que a cremação é uma opção a ser considerada no Brasil, uma vez que não gera impactos no solo e nem em aquíferos, mas que deve ser considerado os impactos da emissão de gases na atmosfera, mesmo que estes sejam minimizados pela utilização de filtros nos crematórios. “Países como o Japão cremam os corpos ao invés de enterrá-los, realizar isso no Brasil perpassa por questões como valores e cultura, mas é preciso levar em consideração a revisão dos costumes fúnebres quando o assunto são os impactos ambientais do enterro”, afirma o pesquisador.