Catamarã, uma incursão pelos rios amazônicos

Toda semana, embarcações imensas que transportam quase 1000 pessoas (e muita história), transitam pelas águas do Norte

 

 

por Sarah Lídice 

Água e floresta. Ao se pensar no Norte, podem ser as palavras que despontam. Norte com rios largos e profundos e cheios de história. Cercados pela maior floresta tropical do mundo. Toda semana, nos chamados “catamarãs”, embarcações imensas, que abarcam quase 1000 tripulantes em tempos normais, transitam pessoas pelas águas do Norte. Em redes, onde se embrenham centenas, num mundo de cores, e em camarotes, suítes, onde poucos têm direito a maior privacidade. 

Fotos: Sarah Lídice/JC

 

Por dentro, os tripulantes, cada um com sua história e muitos dispostos a contá-la. Mãe e filha venezuelas que retornam pra casa depois de quatro anos. R7, jogador de futebol do time local que atrai fãs dentro do barco. Gustavo, um clonador de cartão profissional que navega para “vida direita” em outra cidade. Sr. Carlos, funcionário da companhia de energia que paga R$1.000,00 na sua própria conta de luz. Fabi, adolescente que não estudava há dois anos, por não haver aula na escola. 

Por fora, no rio, mais histórias. Crianças, pequenas, saem de suas palafitas e vão em direção à embarcação. Muitas. Cada uma em sua canoa, vão para receber sacolas jogadas pelos tripulantes. Sacolas com roupas, comidas e suprimentos no geral. E as crianças correm na correnteza para buscar essas doações. 

São esses alguns dos constrastes dessa incursão por dois desses Catamarãs, que percorreram da baía de Guamá, em Belém, passando pela baía de Marajó, Rio Amazonas até se encontrar com o Rio Negro. Quase cinco dias de percurso, nos caminhos pelas águas do Pará e Amazonas.

Sem sinal de celular e sem acesso à internet, jogar conversa fora vira a principal atividade. “Pobre não tem dinheiro, mas tem história”, diz o Sr. Carlos. E ficam ali, dezenas de pessoas, num festival de redes, cada um com a sua — são proibidos casais numa mesma rede. Máscaras são itens raríssimos: “Vocês de lá do sul são cuidados. Aqui é terra sem lei”, falou o jogador. E quem vê a câmera na mão, ou se esconde na rede, ou diz: “Vem, tira foto de mim. Vai fazer documentário?”

Alguns tripulantes atrasados correm com a rabeta para pegarem o navio. E tudo que acontece tem público. Ao longo dos dias  de navegação, vários barcos como esse se atracam, seja para levar os atrasados, ou para os beiradeiros — quando passando pelo rio — e vendedores da cidade — quando passando pelos portos — venderem camarões, castanhas e açaí. Quando esse comércio fluvial acontece, gritos e notas de dez saem e voltam da embarcação, euforia que se aproxima de um leilão.

A Fabi, aquela que não estudava fazia dois anos por conta da pandemia, tem 15 anos e sempre estava acompanhada por algum falador inoportuno. Poucos momentos a vi só. Ela gosta muito da matéria de Estudos Amazônicos. Quem é nortista estuda sobre cultura indígena e ribeirinha, sobre processos de produção dos alimentos, os animais amazônicos e mais tudo que diz respeito à floresta. Na embarcação, Fabi conheceu pela primeira vez alguém que estava na universidade. 

Além das várias gentes, os catamarãs carregam carga. Muita carga. Toneladas de batatas, bananas, materiais de construção e muitos carros e motos. Nessa embarcação, uma das hélices que dão força se desfez com a força da madrugada do mar ao entrar na Baía de água doce. A embarcação seguiu com o risco. Outras, nesse mesmo trajeto, já naufragaram. 

“Deus o livre dessa embarcação cair”, diz um dos tripulantes. Ele relembra o naufrágio do catamarã Anna Karolina III. Em 29 de fevereiro de 2020, com 70% de sobrecarga, o navio se afundou e matou 40 pessoas entre os rios Amazonas e Jari. 

“Deus o livre”, repete.