Aulas práticas no ICB são suspensas por contaminação fúngica nas peças anatômicas

Os modelos passam por restauração e não houve perdas ou prejuízos aos materiais. As atividades devem retornar ainda no segundo semestre deste ano

por Guilherme Gama

Foto: Patrick Fuentes/JC

O prédio três do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP concentra as aulas práticas de anatomia humana de cerca de dezessete disciplinas da Universidade, ligadas a cursos como Odontologia, Fisioterapia e Medicina. Com a retomada das aulas presenciais no campus, a expectativa era de volta às aulas práticas nos laboratórios do Departamento de Anatomia — o que não ocorreu devido à presença de fungos em ao menos dez peças anatômicas humanas utilizadas nos cursos. A contaminação fúngica foi notada ainda em estágio inicial, e acredita-se que se deve à nova forma de conservação adotada pelo instituto e pelas condições laboratoriais impostas no período de pandemia. 

O fungo não apresenta risco à saúde. Entretanto, a medida de suspensão das aulas foi tomada para que as peças sejam restauradas, garantindo a integridade útil e ética dos modelos. As aulas práticas seguem de forma teórica e com auxílio de recursos virtuais, como programas de visualização anatômica tridimensional e com visitação ao Museu de Anatomia Humana do ICB. A retomada aos laboratórios deve ocorrer no segundo semestre deste ano, com módulos de reposição para turmas. 

O JC entrevistou os professores Newton Canteras, chefe em exercício do Departamento de Anatomia do ICB; Patricia Castelucci, coordenadora do bloco didático em que tradicionalmente ocorrem as aulas práticas, e Silvia Lacchini, coordenadora do Museu de Anatomia Humana. Em visita às dependências do laboratório, verificou-se o estado das peças anatômicas. Ao que tudo indica, não houve perdas ou prejuízos materiais. Por questões éticas, a equipe não teve autorização para fotografar os cadáveres. 

Dissecando os laboratórios do ICB

Há pouco mais de dez anos, as peças anatômicas do Departamento de Anatomia do ICB eram conservadas em formol — mistura de água e metanal usada para preservar estruturas orgânicas como órgãos e tecidos. A substância é classificada como carcinogênica desde 2004 pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IACR) e causa males aos olhos, à pele e ao sistema respiratório.

Em 2010, o ICB iniciou um ajuste de conduta para substituição do formol por glicerina, álcool com propriedades semelhantes de conservação, embora com menor potencial tóxico. O processo de conservação em glicerina é menos eficiente, quando comparado ao formol, e relativamente novo para o instituto, que é pioneiro nessa utilização. E, segundo os docentes, a recente experiência com o método gerou a falha na conservação das peças anatômicas. 

Em janeiro deste ano, o instituto previa a retomada das aulas presenciais, de modo a repor as aulas on-line antes do início do semestre letivo. Entretanto, os responsáveis e técnicos do laboratório se surpreenderam com colônias de fungos isoladas em partes de cerca de dez cadáveres. Tratam-se de pequenos pontos de bolor amarelo.

Segundo os docentes, acredita-se que a contaminação fúngica deve-se a alguns fatores externos, somados à experiência com a glicerina. Um deles é o clima de janeiro — mês quente e úmido que pode ter favorecido a proliferação desses organismos. Em períodos normais, a manipulação diária dos tecidos também induzia a limpeza, ao banho em álcool e outros conservantes como parte do protocolo de uso, o que deixou de ocorrer com a pandemia. Até o final de 2021, os docentes mantinham contato com as peças, principalmente para fotografá-las e usar as imagens nas aulas remotas, e confirmam que, até então, as condições de preservação eram normais.

Outro fator que contribuiu para o aparecimento dos fungos foi a necessidade de aumentar a ventilação das salas, com portas e janelas abertas como parte dos protocolos sanitários da pandemia. O maior fluxo de ar acelera a evaporação dos conservantes contidos nos mantos que cobrem os cadáveres — e também carrega o que depois descobriu tratar-se de um fungo aéreo. 

Suspensão das aulas práticas 

Embora apenas cerca de dez peças estejam contaminadas, o ICB decidiu suspender temporariamente todas as aulas práticas em todos os laboratórios de anatomia. De acordo com os responsáveis, a paralisação do ambiente ocorre para que os técnicos possam trabalhar na restauração dos cadáveres com fungos. 

O sequenciamento genético feito pelo ICB identificou os fungos como do gênero Aspergillus e Cladosporium, microrganismos não patogênicos e anemófilos, ou seja, que se dispersam pelo ar. Mesmo sem causar doenças, a presença dos fungos poderia trazer um desconforto psicológico aos estudantes que manipulassem as peças com bolor, o que contribui para a decisão de suspensão das atividades.  

Atualmente, o departamento conta apenas com dois técnicos auxiliares, que seriam sobrecarregados com a demanda de restauração e de atividades das aulas, se ocorressem simultaneamente. Restrições sanitárias também foram consideradas na decisão, pois o ambiente dos laboratórios precisará ser isolado tanto para conter o fungo aéreo e garantir que ele não migre internamente quanto para não expor os estudantes às substâncias químicas usadas nos tratamentos. Outra consideração foi de não desnivelar as turmas quanto ao andamento do curso.

Atividades realizadas no Museu de Anatomia Humana contribuem para continuidade do ensino de Anatomia durante suspensão das aulas práticas presenciais no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Restauração, ampliação do acervo e retomada

“Fomos surpreendidos e aprendemos com o processo de que, com a glicerinação, deve haver uma ação preventiva antifúngica, como tratamento com fenol, de modo periódico”, afirma o chefe em exercício Newton. No momento em que a reportagem foi produzida, as peças estavam em processo de lavagem para retirada física do bolor, seguida por banho com fenol e glicerina. Os docentes destacam que o processo antifúngico é lento (pode levar até três meses) e o departamento aguarda a compra e a chegada de novos produtos químicos para o tratamento eficaz. A ação imediata de tratamento é importante para impedir o alastramento dos organismos. 

Segundo os professores, o processo não ganha agilidade também pela carência de técnicos, que acumulam atividades em meio à proposta de aprimoramento do Bloco Didático de Anatomia, atualmente em fase de evolução metodológica e de estrutura física. Laboratórios estão sendo equipados com novos dispositivos tecnológicos, novos equipamentos técnicos, inauguração de novos espaços e priorizando a ampliação do acervo. O Departamento conta com 30 corpos intactos, à espera de disponibilidade de mão de obra para dissecação, além de 28 parcialmente tratados. Os corpos são adquiridos por doação voluntária para ensino e pesquisa. 

Além das peças que compõem os laboratórios do Departamento de Anatomia, o acervo do ICB inclui o material do Museu de Anatomia Humana, onde também são realizadas atividades educativas e de pesquisa. Ainda que fechado ao público no período de pandemia, o museu esteve à disposição das atividades da graduação e pós graduação — e recebeu pela primeira vez, desde o isolamento social, a visita externa do Giro Cultural no dia 14 de abril.