Da ciência à ação social: pesquisadora da USP organiza projeto de assistência a pessoas com albinismo

Iniciativa nasceu a partir de um projeto acadêmico e se tornou um projeto de vida para a pesquisadora, com construção de fortes vínculos emocionais 

por Julia Mantuani

Foto: Lilian Kimura/Acervo pessoal

Quando cientistas deixam as quatro paredes do laboratório e vão a campo, os frutos podem superar os resultados teóricos e surpreender. Uma dessas experiências transformadoras foi vivida pela doutora em Genética pela Universidade de São Paulo (USP), Lilian Kimura, que, após uma viagem de pesquisa, viu suas perspectivas sobre ciência e impacto social mudarem radicalmente. 

Em 2003, Lilian se juntou ao projeto Variabilidade molecular em populações brasileiras: um estudo do cromossomo X frágil liderado pela professora Regina Mingroni e vinculado ao Centro de Estudos do Genoma Humano (CEGH). No mesmo ano, Kimura partiu rumo às comunidades tradicionais remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, região localizada no sul do estado de São Paulo.  

Nas comunidades, a equipe de pesquisadores coleta amostras para análise genética da população a fim de estabelecer, a partir da ocorrência do cromossomo X frágil, as relações genéticas entre indivíduos de uma mesma comunidade e entre comunidades diferentes. “A minha sorte foi ter me envolvido em um projeto de genética humana em que as viagens de campo ainda estavam acontecendo”, afirma Lilian.

A síndrome do X frágil é uma condição genética e hereditária, na qual um dos genes do cromossomo sexual X deixa de codificar corretamente uma proteína essencial para as conexões entre células nervosas. O mau funcionamento do gene pode resultar em deficiências intelectuais, distúrbios do comportamento e sintomas físicos, como macrocefalia.

A fim de estabelecer uma conexão de confiança com os moradores que participaram das pesquisas, o grupo ia até as comunidades, adentrava na rotina de seus habitantes e procurava sempre esclarecer qual era o intuito da visita e porque era importante a participação deles no projeto, mesmo que o estudo não tivesse uma aplicabilidade direta e imediata. Foi neste contexto que Lilian conheceu pessoas com albinismo que moravam na região.

Nas comunidades quilombolas inseridas na cidade de Eldorado, SP, vivem cinco albinos. A população da cidade é de 15.000 habitantes, segundo o último censo. O albinismo, apesar de ser uma característica rara (afeta 1 a cada 17.000 pessoas no mundo), é considerada frequente nesta população, já que a prevalência aumenta para 1 a cada 3.000 habitantes. “O que mexeu comigo foi perceber que sabia o que era o albinismo e as consequências da falta de melanina, mas não poder fazer nada. Então, este lado além do científico foi tocado.”

Projeto Amor à pele

Foi então que surgiu o projeto que mais tarde passaria a ser chamado de Amor à pele: “Eu comecei a arrecadação de protetor solar, que, por ser um item muito caro, a maioria das famílias não têm condições de manter o uso diário. O item é um elemento mandatório para quem tem albinismo; afinal, não prevenir é muito mais doloroso e pode gerar uma consequência fatal que é o câncer de pele.”  

O projeto fornece, desde 2018, itens como protetor solar e vestuários com proteção UV para os cinco moradores albinos de Eldorado, SP. Mais tarde, por meio das redes sociais, a iniciativa ampliou os horizontes e passou a assistir outros dois bebês com albinismo no interior do estado da Bahia. “A gente faz a campanha através das redes sociais, arrecada com apoiadores e eu envio pelo correio da forma que for possível”, conta a pesquisadora. 

A pessoa com albinismo demanda cuidados específicos, já que a falta de melanina não prejudica apenas a exposição da pele ao sol, mas afeta também o desenvolvimento visual. “Muitas pessoas com albinismo, se não a maioria, vão ter algum grau de deficiência visual. Isso impacta em muitos aspectos, como o aproveitamento escolar”, explica Lilian. 

Em 2020, em meio à pandemia, surgiu um novo desafio: o convite para participar remotamente do projeto de extensão universitária “As pessoas com albinismo e o direito à saúde”, coordenado pela professora Nereida Palko, da Escola de Enfermagem Anna Nery – Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/UFRJ). Para Lilian, o grande diferencial desse projeto é ir além do DNA, da pele e da visão, e olhar para todas as dimensões da pessoa com albinismo.

“Eu não tinha a dimensão do entendimento de como a pessoa com albinismo é invisibilizada no nosso país e no mundo. […]As próprias pessoas às vezes não conhecem a própria condição, então elas não tomam os devidos cuidados e o sistema de saúde não está preparado para abrigá-las.”

‘Nasci sem melanina, como assim?’

A partir da percepção de Lilian de que, como cientista, deveria consolidar sua contribuição dentro da temática, nasceu a ideia de produzir uma cartilha. 

“Nasci sem melanina, como assim?” foi elaborada por Lilian Kimura, Nereida Palko e a equipe do projeto de extensão do qual elas fazem parte. A linguagem da cartilha foi pensada para não demandar extensas habilidades de leitura. O intuito era que crianças ou adultos, lendo ou ouvindo alguém ler, fossem capazes de absorver as palavras e começar a extrair informações sobre o que é ser uma pessoa com albinismo.

A cartilha “Nasci sem melanina, como assim?” foi publicada em formato físico em 2022, com distribuição prevista por meio de grupos estratégicos que atendem pessoas com albinismo. Foto: Lilian Kimura

A publicação, além do embasamento em artigos científicos, também é permeada pelas experiências de vida das pessoas com a condição genética, o que ajuda a responder questões práticas do dia a dia de crianças com albinismo.

O grupo levou em consideração, também, o problema da baixa visão entre albinos, o que exigiu, além de texto em alto contraste, letras em formato grande. A tiragem foi de 500 exemplares, e sua distribuição se deu entre perfis que discutem o albinismo nas redes sociais, como a página Nina Albina, associações e famílias de crianças com albinismo por todo o Brasil.

O objetivo do material, inclusive, é promover aproximação, o que, surpreendentemente, aconteceu durante a pandemia de covid-19. Através de encontros virtuais, que se popularizaram neste período, associações de todo o país se conectaram. Agora, caminham para a criação de um Coletivo Nacional de Pessoas com Albinismo, na tentativa de tensionar o Estado a inseri-los em políticas públicas específicas e garantir visibilidade.