O dia em que perdi o ônibus

por Júlia Rodrigues

Foto: Júlia Rodrigues/JC

Às 7 da noite, ando pelos caminhos arborizados da universidade – não digo ruas, pois ainda eram aquelas vielas truncadas e escondidas entre o mato que mal tive tempo de conhecer. Ouço as cigarras cantarem e sinto o vento frio. Depois de quase dois anos sufocado entre quatro paredes, sou capaz de me prender a qualquer sensação que me afaste de mim mesmo. Não parecia ser somente o meu caso, era como se todos nós nos acostumássemos a um mundo novo. Nessa distração, acabei desapressando os passos, e tive de correr para alcançar o ônibus. 

Não adiantou, e ele passou do ponto. 

Perdi o ônibus. Vou me atrasar para a aula. 

Tudo bem. Depois do isolamento, era esperado que eu não soubesse mais as manhas – ou não fosse mais rápido o suficiente – para pegar um ônibus. Não faz tão mal, daqui a dez minutos outro passa. 

O ponto estava cheio. Por baixo das máscaras, não dava para saber se as pessoas ali estavam tão impacientes quanto eu. Penso que talvez não estivessem atrasadas. Mas não faz tão mal, não é? Ou faz? Penso agora que nenhum aluno decente se atrasaria logo nas primeiras aulas presenciais. 

Perdi o ônibus. Vou perder a aula. É mais uma teoria que não vou aprender direito, mais uma oportunidade que vou deixar passar. Perdi vivências, amigos, estágios. Perdi o que era para ser a fase mais importante da minha vida. 

Dez minutos depois, outro ônibus passa. Eu entro, aliviado. Quase todos que esperavam no ponto entram também – agora eu sei como é viajar em um 8012. Agora, a realidade, antes plástica, montada como um set ou uma casa de bonecas estática e vazia, acontece na minha frente. Alguns alunos estão sentados, outros se penduram nos próprios braços, em pé. Novamente, as máscaras escondem suas expressões. Estou frustrado pelo atraso. Mexo os pés freneticamente como se dessem força motor para que o ônibus ande mais rápido. 

Por que tão ansioso? Não faz tão mal, afinal, é uma aula prática. Seria a angústia de quase dois anos acumulada? A ânsia por voltar logo à rotina normal? 

Olho os rostos parcialmente cobertos e penso: mais de meio milhão de mortos. Seria algum deles pai, mãe, irmão, irmã, avô, avó, marido, esposa de alguém? O que mais perderam, além de aulas, disciplinas e teorias? Talvez os corredores não sejam mais os mesmos, sem alunos, funcionários e demais visitantes que antes os frequentavam.

A perda é gigante: como se o câmpus de São Paulo fosse esvaziado mais de seis vezes. Eu suponho, pois não é possível saber quantos deles simplesmente abandonaram o trabalho ou o curso por dificuldades financeiras ou sequelas da doença. Quantos deles sucumbiram à catástrofe sanitária, social e econômica.

Penso. E agora me sinto internamente envergonhado. Desprendo-me do meu egoísmo e tento atravessar as máscaras, acessar os olhos e os olhares. Pode ser que eu não tenha perdido tanto quanto eles. 

O ônibus para. Desço em frente à minha faculdade. Para alguns, a vida continua mesmo com um vazio no peito.