A questão do aborto nos EUA e suas reverberações

 A possibilidade de mudança no direito ao acesso ao aborto causa um terremoto na política americana – e seus abalos poderão ser sentidos daqui

por Bruno Kristoffer

Registro de protesto pela descriminalização do aborto em São Francisco, em 2013. Foto: Steenaire/Creative Commons

No dia 2 de maio de 2022, o jornal Politico vazou o rascunho de um relatório pertencente a Samuel Alito, juiz da Suprema Corte norte-americana. No documento, Alito repudia a decisão de 1973 do Supremo que descriminalizou o aborto, afirmando que a maioria dos juízes da Corte está pronta para derrubar o caso.

Atualmente, o direito ao aborto é garantido por todo o território dos Estados Unidos. Apesar de variações na legislação de estado para estado, qualquer gestante pode recorrer a uma clínica e passar pelo procedimento.

A Suprema Corte estadunidense conta com nove membros, sendo necessária maioria de cinco para concretizar qualquer alteração proposta. No momento, de acordo com o documento vazado, cinco juízes estão prontos para votar a favor de uma disputa legal ocorrida no Mississipi, que levaria à anulação da jurisprudência de 1973. Três seriam a favor de sua manutenção. O último deles, chefe da Suprema Corte John Roberts Jr., pertence à ala conservadora, porém mantém diálogo com setores mais liberais e ainda não deu seu parecer.

Caso a legislação volte a seu status como antes de 1973, o acesso ao aborto não seria mais um direito garantido ao nível federal, e voltaria a ser regido de acordo com a lei de cada estado, tornando o procedimento imediatamente ilegal em 30 das 50 unidades federativas.

Epicentro

As primeiras legislações anti-aborto dos Estados Unidos datam do século 19. Até ali, a lei americana era pautada pela britânica, que permitia o procedimento enquanto a gestante não sentisse os movimentos do feto. Dada a imprecisão descrita pela lei, a partir dos anos 1800, os estados começaram a tornar a operação ilegal. Ainda que na ilegalidade, estima-se que cerca de 800 mil abortos eram realizados anualmente no país na década de 1930, conforme apontam pesquisadores e historiadores da Universidade de Oxford, do Reino Unido.

Em 1968, Norma McCorvey, uma jovem de 21 anos, residente do Texas, estava em sua terceira gravidez. McCorvey chegou a fabricar uma história, após sugestões de seus amigos, para conseguir o acesso ao aborto por vias legais, porém, devido à falta de evidência e documentação, o processo não foi bem-sucedido. McCorvey ainda buscou uma clínica clandestina, mas a mesma tinha sido fechada pelas autoridades.

Eventualmente, McCorvey foi direcionada para as advogadas Linda Coffee e Sarah Weddington, que procuravam mulheres grávidas em busca de abortar. McCorvey foi encoberta pelo pseudônimo Jane Roe, e o caso começou a tomar forma em 1970, sob o título “Roe v. Wade” (Henry Wade, no caso, era o promotor do condado de Dallas, no Texas). Após três anos, Roe chegou na Suprema Corte americana, onde recebeu dois votos contra e sete a favor. A decisão aponta como inconstitucional a legislação texana e reforça como direito fundamental da mulher a escolha de manter ou não a gravidez.

Até então, 30 dos 50 estados proibiam o aborto sem exceções, 16 impunham sérias restrições, 3 permitiam sob determinadas instâncias e apenas o estado de Nova Iorque mantinha o acesso ao procedimento sem restrições. A partir de 1973, a decisão da Suprema Corte no caso Roe v. Wade tornou inválida as leis estaduais sobre o tema, pondo fim ao controle dos estados sobre a gestação até seu primeiro trimestre – ou seja, cada estado ficou proibido de banir o aborto durante os três meses iniciais da gravidez, mas com permissão para imporem restrições após o período.

Um dos pontos levantados constantemente no debate sobre o aborto, bem como sobre o caso Roe, é quando a vida humana realmente tem início: se na concepção, no nascimento, ou entre esses dois momentos. Os juízes se recusaram a resolver esse dilema. No documento entregue pela Suprema Corte à época, lê-se:

“Não precisamos resolver a difícil questão de quando a vida começa. Quando aqueles treinados em seus respectivos campos da medicina, filosofia e teologia são incapazes de chegar a um consenso, o judiciário, neste ponto do desenvolvimento do conhecimento humano, não está em posição de especular uma resposta.”

O que a Suprema Corte buscou, neste cenário, foi manter o direito à privacidade.

“O direito à privacidade, seja ele fundado no conceito de liberdade pessoal e restrições estaduais encontrado na décima-quarta emenda constitucional, ou no resguardo aos direitos do povo na nona emenda, é amplo o suficiente para abrigar a decisão da mulher se ela deseja encerrar sua gestação.”

De acordo com o documento, a ilegalidade do aborto infringe os direitos de privacidade em diversos aspectos: por forçar à mulher uma vida angustiante, por causar dano psicológico e físico, bem como outros problemas ligados ao zelo de uma criança indesejada.

Abalos

Desde Roe v. Wade, múltiplas tentativas de reverter a decisão da Suprema Corte surgiram nos Estados Unidos. Ronald Reagan, que assinou uma das leis mais liberais sobre aborto durante seu primeiro mandato enquanto governador da Califórnia nos anos 1960, voltou atrás ao assumir a presidência em 1981, declarando-se anti-aborto até a conclusão de seu mandato, em 1988..

O mesmo pôde ser observado durante a atuação de outros presidentes, que apesar de terem se declarado como pró-escolha (como é popularmente conhecido quem é pró-aborto), demonstraram-se pró-vida (similarmente, termo popular para anti-aborto) ao assumirem a Casa Branca. É o caso dos presidentes George H. W. Bush (1989-1993), George W. Bush (2001-2009) e Donald Trump (2017-2021).

Juntos de Ronald Reagan, os quatro foram responsáveis por adicionar à Suprema Corte juízes que se demonstram abertamente opostos aos resultados da Roe, e por isso hoje vemos um ensaio de votação em que a maioria votaria pela anulação do direito irrestrito ao aborto.

Votações da Corte em 1976, 1977 e 1989 chegaram perto de derrubar Roe, mas o episódio de maior visibilidade aconteceria em 1992. No caso, conhecido como Planned Parenthood v. Casey (Planned Parenthood é uma ONG responsável por prover serviços de saúde nos EUA e em outros países – entre eles, operações de aborto), foi permitido aos estados que colocassem limitações para procedimentos ocorridos durante os três primeiros meses de gestação.

Desde então, a pressão para que Roe seja revisitada vem aumentando. O movimento pró-vida hoje dialoga com setores mais conservadores da sociedade e da política, e manifestações como a Marcha pela Vida atraem mais seguidores anualmente durante protestos que ocorrem no aniversário da Roe.

Por aqui

No Brasil, o aborto é criminalizado desde 1824, e a legislação atual data de 1940, tendo sofrido pequenas alterações com os anos. Por exemplo, desde 2012 é permitida a interrupção da gestação de fetos anencéfalos. Fora destes casos, ainda é permitido aborto em casos de estupro ou se a vida da pessoa gestando corre risco significativo.

Manifestantes durante evento Viva Floripa, organizado pela Igreja Católica a favor de criminalização do aborto, em 2013. Foto: Vitor Marinho/Creative Commons

Devido à ilegalidade do procedimento, é difícil chegar a um consenso sobre as estatísticas no Brasil. Débora Diniz, antropóloga, documentarista, pesquisadora e professora universitária, conduziu em 2016 a Pesquisa Nacional do Aborto, que apontou o número de 503 mil abortos clandestinos que ocorrem por ano no Brasil. Outras pesquisas, como a do Instituto Guttmacher, ONG que se dedica a direitos reprodutivos e sexuais, apontam para 800 mil casos anuais.

Ilana Ambrogi, médica de família e comunidade, doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva pela Fiocruz, e analista de pesquisa sênior do Instituto de Bioética da Anis, conversou com o Jornal do Campus sobre o assunto.

Para Ambrogi, aborto é uma questão básica de saúde individual e pública, assim como um direito humano fundamental. “A nossa legislação relativa ao aborto está no código penal que criminaliza uma questão de saúde, isso não pode acontecer. [Aborto] não pertence à código penal”, afirma.

Ainda sobre a legislação dos anos 1940, adiciona: “desde 1940 houve avanços tecnológicos importantes que permitem garantir o aborto via tratamentos tanto medicamentoso quanto cirúrgicos de maneira extremamente segura.”

Reverberação

O chefe da Suprema Corte norte-americana, John Roberts Jr., afirma que o vazamento do documento pelo jornal Politico precisa ser investigado. Porém, Roberts confirma que o documento é verídico, ainda que sua versão não seja a final e o resultado possa, na prática, ser outro, quando a Corte for de fato à votação.

Membros de diversas esferas do governo norte-americano se manifestaram. Josh Hawley, senador do Missouri pelo partido Republicano, repudiou o vazamento.

“A esquerda continua seu ataque à Suprema Corte com uma quebra de sigilo sem precedentes, claramente destinada a intimidar. Os juízes não devem ceder a essa tentativa de corromper o processo. Mantenham-se fortes.”

O diretor da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, reforçou a importância de acesso amplo ao aborto, sem citar diretamente a discussão ocorrendo nos Estados Unidos.

“Mulheres sempre devem ter o direito de escolha quando referente a seus corpos e saúde. Restringir o acesso ao aborto não reduz o número de procedimentos – isso leva mulheres e meninas a buscarem procedimentos inseguros. Acesso ao aborto seguro salva vidas.”

Para Ilana Ambrogi, a manifestação de Tedros Adhanom é urgente e fundamental. Explica: “através das evidências verificáveis, [a ciência] pode desmistificar e desestigmatizar as questões sobre o aborto, isto é, superar o debate de conteúdo moral. (…) A ciência mostra que aborto é questão de saúde e direito.”

Ainda de acordo com a pesquisadora, o Brasil é um dos países com as leis mais restritivas sobre o aborto em âmbito global. Para ela, a criminalização dificulta o “acesso à informação de saúde sexual adequada, e acabamos por encontrar múltiplas barreiras ao acesso a métodos contraceptivos”, bem como leva a casos de violência obstétrica e abusos psicológicos.

Na America Latina, há pressão para que o aborto seja descriminalizado. Em países como Colômbia, Cuba, Guiana, Uruguai e em alguns estados do México, o procedimento é completamente legal. A Argentina foi o último país a entrar para a lista, tendo legalizado o procedimento em dezembro de 2020.

“Se a reversão [de Roe v. Wade], de fato, se concretizar, o que infelizmente é bem provável, isso deve afetar negativamente o Brasil e muitos outros lugares, pelo possível impulso que esse retrocesso pode causar nos movimentos anti-direitos, anti-ciência”, aponta Ambrogi. Mas a pesquisadora mantém algum otimismo: “devemos focar e aprender com as influências que visam garantir direitos e salvaguardar a saúde de sua população.”

Ambrogi aponta para um problema global que afeta as populações mais pobres. “No Brasil, sabemos que o aborto é um evento comum na vida das mulheres, ocorre em todas as classes sociais, com mulheres de todas as regiões do país, mulheres que já têm filhos e mulheres que têm religiões diversas. No entanto, quem morre por não ter acesso ao aborto seguro são, majoritariamente, as mulheres negras e indígenas.” A pesquisadora enfatiza pesquisas que demonstram que quem sofre mais são pessoas jovens, abaixo de 14 anos, de baixa escolaridade, e que estão localizadas nas regiões de menor Índice de Desenvolvimento Humano do país.

Questionada sobre quem deve ter a palavra final na discussão, Ambrogi conclui: “quando há questões de necessidades individuais, como a decisão referente a uma gravidez, só aquela pessoa pode saber o que faz sentido para a vida dela. Não somos eu, nem você, nem o vizinho que deve estar em lugar de julgar. Isso é incompatível com um estado laico, de fato. Por isso, dado que a criminalização é um fundamento de base moral, o debate público sobre o aborto não deve ser feito fora das esferas de saúde pública, evidências e direitos humanos.”