A realização do sonho da menina paraense de entrar na USP décadas depois

A conhecida Vandinha é estudante do curso de História e moradora do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, preocupada com a permanência regular de estudantes nas moradias

por Luiz Attiê e Wálace de Jesus

Fotos: Jaqueline Silva/JC

Aos seus quase 62 anos, Vanda Araújo é estudante de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Eu entrei na USP em 2018 através do Enem via cotas PPI e, aliás, viva as cotas!”. Vanda viajou por algumas regiões do Brasil em busca de estabilidade social e financeira, e encontrou na USP uma oportunidade, mesmo que desacreditada, de voltar ao antigo sonho de cursar história. “Eu saí de Belém e vim para São Paulo. Voltei. Fui para o Rio. Voltei. Fui para o sul do Pará até que voltei de novo. Fui para o Maranhão e vim para cá. É aquela coisa: a gente vive de não ter como criar raízes porque precisa sobreviver”. 

Quando a questionamos sobre o ingresso na Universidade e o que isso representava, ela relatou que era uma coisa “muito linda”. Em sua visão de criança pobre, miserável e em situações famélicas, como ela mesma descreveu, a USP era apenas um sonho distante, abstrato e restrito aos filhos das patroas, das casas de família que frequentava. Dentro de casa também não encontrava muito respaldo e incentivo devido à ignorância da família em relação ao que o ensino superior representa. 

“Então isso foi uma coisa que foi morrendo porque chega uma hora que quando tu falas muito de uma coisa e ninguém te apoia e tu só recebe desdém, de repente aquilo vai murchando. O sonho foi se encolhendo e tá, parou”, relata.

Mãe de dois, Vanda reacendeu seu sonho outrora apagado com o incentivo do filho que passou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Como não tinha diploma do ensino médio, utilizou o Enem para conseguir o certificado de conclusão. Antes de cursar História na USP, Vanda tinha conseguido uma bolsa no curso de Gestão Financeira da Unip e, por razões de saúde, optou pela modalidade EAD, mas logo em seguida prestou o Enem novamente e entrou no curso de História da FFLCH-USP. “Eu sempre amei história, sempre fui louca, mas eu detestava a história do Brasil porque eu achava muito fantasiosa aquela história do príncipe no cavalo branco”, ressaltou.

“Eu confesso que foi surpresa até para mim, eu não acreditei até sair do vão (do prédio da FFLCH) com a carteira e o Busp [Bilhete USP] provisório. O tempo todo eu achava que iam me dizer que tinha sido um engano. A gente vive essa insegurança.”

Como muitos calouros, Vanda teve muitas dificuldades iniciais no curso, que demandava certo repertório bibliográfico. “Eu me sentia burra, eu não entendia nada daquela dinâmica”, relatou. “Descobri que a história não era apenas uma paixão de adolescência, que é a minha paixão de vida”, destacou Vanda, quando também comentou sobre a afinidade com o tema da história da África, que será a linha de pesquisa da sua próxima Iniciação Científica. 

“Eu acho que foi um avanço uma menina de palafita, da periferia das periferias de Belém, estar na USP. Mas eu acho pouco. É preciso que outras meninas, porque as meninas como eu, da geração de onde eu vim, não tiveram oportunidade também.”

Questionada sobre a influência da USP desde a sua entrada no curso de História, Vanda declarou: “A USP mudou a minha vida. Entrar na USP mudou a minha vida. Ninguém mais me reconhece que conviveu comigo antes. Eu cresci enquanto pessoa e eu consigo, até pela minha experiência de vida, separar as coisas. A USP é uma instituição, ela continua sendo e ela vai continuar sendo daqui a mil anos. São as pessoas que a comandam, é para elas que eu tenho que voltar a minha indignação. Não pra USP, a USP é a perfeita dos meus sonhos até hoje. Ela é muito mais que isso, porque na época eu sonhava sem ter dimensão de quanto podia sonhar, do que era o sonho. Hoje, eu tenho.”

Além do curso de História, Vanda também participa de uma iniciação científica no Centro de Inteligência Artificial do Inova-USP, onde conhece pessoas de diversos cursos e vivências, o que, segundo ela, tem sido um grande aprendizado, assim como ela também sabe que para os outros do núcleo, ela também representa um outro estilo de vida. “Pela primeira vez eu fui avaliada não pela idade, a minha idade não chegou à minha frente, e hoje eu sou bolsista lá”.

Ela também é bolsista cuidando da horta que fica junto ao Crusp. Seu conhecimento de Plantas Alimentícias Não Convencionais (Pancs) e seu amor por jardinagem acabaram fazendo dessa a oportunidade perfeita para ela receber e ter mais respaldo oficial para cuidar das plantas. É possível reconhecer a casa dela ao caminhar pelos corredores do Crusp sem problemas, basta ver um quintal cheio de vasos com as mais diversas folhas, flores e frutos. Enquanto conversávamos, ela explicava sobre cada uma delas, seus benefícios e como cultivar.

Quando entrou na faculdade, Vandinha já estava estabelecida em São Paulo. Trabalhou como artesã, costureira e “faz-tudo” em uma empresa. Na capital, morou em ocupação, no centro da cidade e, no início do curso, residia na zona leste paulistana. Em 2019, desempregada e sem poder arcar com os custos da sua casa, ela começou o processo para se mudar para o Conjunto Residencial da USP (Crusp).

Como pessoa com deficiência que limita sua mobilidade, ela conta que conseguiu uma vaga para a moradia com certa facilidade. Segundo ela, a sua assistente social era atenciosa e a acompanhou pessoalmente para conhecer os quartos em que poderia morar. “No primeiro lugar eu já fiquei, mas a Neusa tinha proposto outros lugares, caso eu achasse que em qualquer lugar que eu fosse não estava bom. Ela se propôs a me acompanhar, e eu penso que deveria ser assim para todo mundo, mas eu entendo que também uma assistente para milhares de pessoas inviabiliza um pouco isso.”

Ainda em 2019, Vandinha começou a ficar conhecida por sua luta contra os moradores irregulares do Crusp. “Eu cheguei aqui e vi a situação de caloures por vaga e comecei a lutar para que as vagas fossem destinadas para caloures. Ou seja, comecei a combater a presença e a ocupação irregular. E obviamente isso me tornou uma persona não grata em muitos espaços, né? Porque eu posso até ser diferente, mas eu não concordo com a máxima de que “aos amigos do rei, tudo”. Para mim não importa. Há pessoas irregulares que eu amo como filhos, acolho, mas elas sabem que eu não vou defender a presença delas aqui ocupando vaga. Como hóspedes sim, ocupando vaga não.”

Por outro lado, com a chegada da pandemia, ela viu também um acolhimento da parte de vários moradores do Crusp para com ela. Por ser parte do grupo de risco, muitos se propunham a ajudá-la para que ela evitasse qualquer contágio. Ela conta que é um sentimento de troca. O cuidado dela com a comunidade é reflexo do cuidado da comunidade com ela.

*Durante a entrevista, Vanda parou diversas vezes para cumprimentar estudantes e colegas e em alguns momentos da entrevista optou pela linguagem neutra.