Além do ensino superior: a luta pela qualidade da educação básica na USP

Escola de Aplicação organiza oitava mobilização contra falta de professores e recebe indicativo de contratações após período eleitoral

por Luanne Caires

Foto: Ferdinand Miranda

A maioria das pessoas, quando pensa na USP, imagina jovens adultos desenvolvendo suas atividades em cursos de graduação de diferentes áreas do conhecimento. Mas não só de estudantes de ensino superior é feito o quadro de alunos uspianos. Nas proximidades da portaria 1 da Cidade Universitária, ao lado do Rio Pirajussara, há uma escola de educação básica, que atende a alunos do ensino fundamental ao ensino médio. A Escola de Aplicação (EA), vinculada à Faculdade de Educação da USP (Feusp), é referência na qualidade de ensino e já foi classificada como a melhor escola pública de São Paulo. Apesar disso, a EA atualmente enfrenta desafios com a falta de professores, de funcionários e de reconhecimento por parte das comunidades interna e externa à universidade, o que motivou a publicação de sua oitava carta aberta em defesa da escola — um número que revela falta de ações eficazes da USP quanto às dificuldades apontadas desde 2015. 

Ao longo dos últimos sete anos, a Escola de Aplicação já perdeu mais de 20 profissionais com contratação efetiva e, agora, conta com cerca de 30% do seu quadro de professores formado por contratações temporárias de 12 horas semanais. Alguns dos setores mais afetados são o Ensino Fundamental I (do 1° ao 5° ano) e a área de Ciências da Natureza, que inclui as disciplinas de Ciências, Biologia, Física e Química. 

No caso do Ensino Fundamental, a falta de professores em regime de 40 horas por semana, que é o regime normal da Escola de Aplicação e que permite a dedicação exclusiva a uma turma, tem prejudicado o estabelecimento de vínculos necessários às fases iniciais de alfabetização infantil. Em entrevista ao JC, Maria de Fátima Morissawa, orientadora pedagógica e educacional da escola e vice-diretora no período de 2018 a 2021, explica que cada ano na Escola de Aplicação é organizado em duas turmas com 30 alunos, exceto o primeiro ano do Ensino Fundamental, que conta com três turmas de 20 estudantes cada. No entanto, como os contratos são temporários e prevêem uma carga horária semanal bem menor do que a necessária, as crianças assistem a aulas com professoras distintas ao longo da semana. 

“É um efeito nefasto [para] crianças de sete anos que têm duas professoras diferentes. Na segunda e na terça é uma professora; na quarta, são as duas; na quinta e na sexta é a outra. Isso para a criança, que está ali na metade do caminho da sua alfabetização, cria rupturas. Por isso, ter professores temporários ajuda, mas não resolve [o problema]”, explica. 

A falta de professores efetivos no Ensino Fundamental também dificulta a manutenção e a reposição de aulas quando o profissional responsável por uma das turmas precisa se ausentar. Ferdinand Miranda, pai de uma estudante do primeiro ano, conta que recentemente uma das professoras afastou-se das atividades por licença-médica e foi preciso condensar todos os alunos em duas turmas: “Não é uma situação fácil. São alunos pandêmicos, que vêm de uma relação instável com a escola. Em uma pandemia, além de uma situação pedagogicamente complicada, isso também se revelou uma situação perigosa do ponto de vista sanitário e muito difícil de controlar também”. 

Na área de Ciências da Natureza, há apenas uma professora com regime efetivo. Todos os demais são temporários e, entre as atividades previstas em seu contrato, não estão incluídas reuniões pedagógicas, participação em projetos extracurriculares e outras funções que permitem a integração com a comunidade escolar e com o projeto político-pedagógico em curso. Fábio Bezerra de Brito, atual vice-diretor e professor de História na Escola de Aplicação, afirma que o que aconteceu com a área foi “uma hecatombe” e que, após a saída da única professora de Química em 2015, professores das outras disciplinas, como Biologia e Física, saíram progressivamente. “É uma área potente na escola, que conta com laboratórios, com ensino por experimentos, com estudos do meio, mas que pareceu uma trama da Agatha Christie: só resta um. Todo mundo sai”, lamenta ao referenciar a obra E não sobrou nenhum, da escritora inglesa.

Arte: Luisa Costa/JC

As raízes do problema

A falta de professores na Escola de Aplicação é uma pauta antiga da administração escolar junto à Faculdade de Educação e à Reitoria da USP. Segundo Marlene Isepi, orientadora pedagógica e educacional e também ex-diretora da escola, a falta de professores ocorre desde antes de 2015, mas que, até aquele ano, a situação era controlável pela distribuição da carga didática entre professores de uma mesma disciplina: “Em História, por exemplo, eram quatro professores. Quando um saiu, a carga horária foi repassada para os outros três. Então saiu o terceiro, e a carga horária foi repassada para os outros dois, que é a situação que temos hoje”. Um dos professores é, inclusive, o Fábio, atual diretor, que acumula funções até que o processo seletivo para contratação de dois docentes temporários na área esteja concluído. 

Marlene complementa afirmando que a Escola de Aplicação já havia anunciado aos órgãos administrativos da universidade que um problema sério ocorreria quando o professor de uma disciplina que só tivesse um docente disponível pedisse desligamento ou se aposentasse. Na época, esse era o caso das disciplinas de Química, Filosofia e Sociologia. No fim de 2015, a professora de Química deixou a EA para ocupar uma vaga em uma escola da rede privada e, embora muitas alternativas de reposição tenham sido buscadas pela Direção, a escola chegou a ficar mais de 40 dias sem aula de Química para alunos do 9° ano do Ensino Fundamental e de todo o Ensino Médio em 2016. 

Também em 2016, a USP implementou um novo Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), que utilizava uma verba não consumida no primeiro PIDV criado em 2014. O plano tinha como objetivo reduzir as despesas com o quadro de técnicos-administrativos da universidade em um período no qual a USP enfrentava orçamentos em déficit e buscava medidas de recuperação financeira. Entre os profissionais que aderiram ao plano, estava a psicóloga Ana Mello, então a única psicóloga da Escola de Aplicação. 

Somente no ano seguinte, a USP aprovou a Resolução nº 7.335/2017, que prevê, em seu artigo terceiro, a contratação temporária “em caráter excepcional, para atender a necessidades didáticas urgentes da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação, bem como do Colégio Técnico de Lorena, da Escola de Engenharia de Lorena”. Foi o início da dinâmica de professores temporários, marcada por baixos salários e alta rotatividade, e que não supria a demanda por profissionais não docentes. 

Segundo Ana Lúcia Bezerra de Nunes, professora de Educação Física na escola, muitos temporários também trabalham na rede de ensino municipal, estadual ou em outros lugares e, quando conseguem melhores oportunidades profissionais, deixam a Escola de Aplicação, que é de onde geralmente vem o menor salário. A percepção de que a remuneração insuficiente é um dos motivos para as trocas constantes de professores é compartilhada por Ramiro Penha, pai de aluno do quarto ano do Ensino Fundamental e funcionário da USP no atendimento à Educação Infantil. “As pessoas precisam de um segundo emprego porque, para quem tem doutorado, eles [a USP] estão pagando menos de dois mil reais. Doutorado é uma vida dedicada ao estudo. Pagar menos de dois mil reais para 12 horas de trabalho, que nem  incluem o tempo de preparação dessas aulas, não dá. Não é disso que a gente fala quando fala da excelência da Escola de Aplicação”, afirma. 

O trabalho além da sala de aula: ensino, pesquisa e extensão

A ausência de um tempo previsto para preparação das aulas e participação dos professores em outras atividades é uma das principais críticas da Escola de Aplicação às medidas provisórias adotadas pela Reitoria. Fábio destaca que a importância do regime de 40 horas semanais na contratação de professores vai além de ocupar os horários de aula. Parte do período de atuação na escola é em sala com os alunos, mas outra parte é dedicada à formação continuada, à produção de materiais didáticos originais, à integração com professores de outras áreas e com pesquisadores no campo da educação. 

Para Luciano Colpas, professor de Educação Física na EA, a participação nos projetos e programas da escola, como o Negritude, o Gênero e Sexualidade, o Integridade e outros é uma das marcas do que torna a Escola de Aplicação um espaço de aprendizagem plural e cidadã, para além dos conteúdos estritamente disciplinares. “12 horas não correspondem muitas vezes nem à necessidade de carga didática daquele professor. A Ana [Lúcia] e eu, por exemplo, temos 18 aulas por semana. Além das reuniões gerais, de área, de projetos. Com menos professores, você articula menos as aulas, o planejamento das disciplinas e os programas todos. A possibilidade de fazer um trabalho de qualidade diminui”, afirma. 

Projetos desenvolvidos pelos estudantes nas disciplinas são compartilhados em murais da escola, reforçando o caráter coletivo do conhecimento. Foto: Jorge Fofano/JC

A preocupação com a pluralidade da formação, com a contínua reflexão sobre a prática e com a experimentação de novas formas de ensinar e aprender é a base de uma Escola de Aplicação. O próprio nome da escola faz referência à possibilidade de aplicar os conhecimentos produzidos nas fronteiras do campo educacional. Segundo Vivian Batista da Silva, atual diretora da escola e docente na Faculdade de Educação da USP, a EA surgiu antes da Feusp, a partir de uma iniciativa dos centros regionais de pesquisa educacional. A proposta que fundamenta sua implementação é a de que a educação deve ser objeto de estudos cuidadosos e de que são necessárias escolas que funcionem como modelos para as demais. “Então a Escola de Aplicação é pública também nesse sentido, porque ela precisa colaborar com a constituição dos sistemas de ensino como um todo. É um espaço de realização de pesquisas ainda hoje, de formação permanente dos seus professores e de futuros professores”, ressalta a diretora. 

Ao receber pesquisadores, acolher estagiários de diversos cursos de licenciatura da USP e de outras instituições e atender à comunidade externa à universidade, a Escola de Aplicação atua nos três pilares da universidade pública no Brasil: pesquisa, ensino e extensão. Para Ferdinand, o papel de aplicação da escola só pode alcançado plenamente com o fortalecimento do quadro de professores e demais funcionários. Ele cita o caso do Novo Ensino Médio, política educacional que causou polêmica desde sua elaboração e que começou a ser implementada a partir deste ano nas escolas brasileiras: “Uma escola enfraquecida é mais suscetível aos absurdos que algumas reformas propõem. A Aplicação pode experimentar mais, no bom sentido, e contrapor melhor o que se vai colocar no ensino público”. 

A Educação Especial

Além de propor alternativas para testar e aprimorar políticas públicas, a restauração de um quadro efetivo de professores e demais funcionários da Escola de Aplicação é necessário para que ela atenda às legislações educacionais já em vigor, como as políticas de educação especial e educação inclusiva. “Há uma estrutura complexa de a gente garantir que quem tem necessidade especial esteja na escola, esteja incluído nas atividades regulares e que tenha ali todas as suas necessidades atendidas. Então isso por lei já é garantido e a gente também está lutando para que isso aconteça”, explica Vivian. 

Em maio, a Escola de Aplicação encaminhou um ofício à Reitoria da USP solicitando, além de professores para várias disciplinas, dois professores de educação especial, quatro auxiliares terapêuticos escolares e três profissionais de apoio à inclusão. Maria de Fátima complementa que a importância desses profissionais no ambiente escolar ficou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19, no atendimento a estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). “Tivemos um aluno que enfretou muitas dificuldades durante a pandemia, pois ele não conseguia entender porque precisava ter aulas em um lugar que não era a escola. Depois de várias reuniões conosco, a família recorreu a um profissional de acompanhamento e isso deu bastante certo, inclusive no retorno ao presencial, para a reinserção dele no grupo, a mediação vincular com os adultos”, conta. 

Boas perspectivas e a força da coletividade

Após anos de espera, os pedidos de contratações definitivas feitos pela Escola de Aplicação receberam um indicativo de aprovação pela USP. Em nota ao JC, a Reitoria informou que “a contratação de docentes e servidores técnicos e administrativos foi suspensa na Universidade a partir de 2014 em função das restrições orçamentárias enfrentadas pela Instituição no período”, mas que, no planejamento da Reitoria, “já está prevista a contratação de profissionais para a Escola de Aplicação”. Por enquanto, há três processos seltivos abertos para contratação de professores temporários: um para Educação Especial, um para Sociologia e um para duas vagas de História. 

A Direção da EA confirmou que a Reitoria aprovou as vagas solicitadas e que a expectativa é de que os novos professores sejam contratados no início do próximo ano letivo. A espera se deve ao fato de 2022 ser um ano eleitoral, o que impõe restrições à nomeação de servidores e empregados públicos, segundo a Lei n° 9.504/1997, que estabelece normas para as eleições no país. Novos profissionais só podem ser contratados se aprovados em concursos homologados até três meses antes das eleições, no caso deste ano, até 1° de julho. Após essa data, a contratação só estará liberada em janeiro de 2023, após a posse dos eleitos. 

Arte: Luisa Costa/JC

Para Fábio, a nova Reitoria, que assumiu em janeiro deste ano, tem se mostrado mais sensível ao diálogo e disposta a uma política de reestruturação de espaços como a Escola de Aplicação e o Hospital Universitário na USP. Mas os pais de alunos, embora compartilhem do otimismo, reforçam a importância de manter a mobilização ativa em prol da escola até que os concursos públicos para novos professores e funcionários sejam de fato realizados e as contratações sejam oficializadas: “Essa notícia é ótima. Mas são palavras. Palavras que, sem pressão, vão continuar sendo palavras. Aí é a nossa parte, é o lado de cá que vai manter a pressão para que essas palavras se efetivem. Porque não vamos desistir da luta”, afirma Ramiro. 

A parceria e a coletividade, que reúnem estudantes, pais, professores e demais funcionários da Escola de Aplicação, são aspectos que, para todos os entrevistados nesta reportagem, fazem da EA uma escola especial. A professora Ana Lúcia cita o espaço democrático — um momento da rotina escolar em que os estudantes podem discutir problemáticas da escola — como uma ponte importante entre filhos, pais e professores. E Luciano complementa: “É a oportunidade de trabalhar junto. Faz uma grande diferença. E nós, professores, nos sentimos fortalecidos, a gente tem pra onde correr. A gente junta forças, construindo algo coletivo que é bom pra todo mundo”.

Afinal, é como Ferdinand pontua: “A educação pública é um direito. Não tem que depender de reitor, de promessa. É algo que precisa estar colocado permanentemente em nossas vidas, como saúde, segurança pública, tudo isso que é nosso de direito”.