Aniversários, aniversários. Pandemias à parte

Como recuperar o fôlego para apagar as velinhas após dois anos sem comemorações

por Jaqueline Silva

Foto: Jaqueline Silva/JC

A pequena de galochas vermelhas tem 12 anos, mas é a mais alta da classe desde que completou cinco primaveras. É louca por filmes da sessão da tarde, crônicas de Luis Fernando Veríssimo e pão com manteiga. Dando os primeiros passos na adolescência, a ansiedade é uma grande inimiga. Rói as unhas e, o esmalte, quando aparece, é uma camada fina de base embebida de cravos que a mãe comprou justamente para que a menina parasse de roê-las.

A menina de 14 já é garota, é apaixonada (em segredo) por um jogador de cabelos cacheados da seleção brasileira de futebol que faz aniversário no mesmo dia que ela e ouve Black Sabbath para impressionar um menino mais velho da escola. Ainda rói as unhas, mas desde que começou a ler Simone De Beauvoir definiu que esmalte não tá com nada. Nos jantares em casa, utiliza do sarcasmo para falar com os irmãos. 

A “mulher” de 15 não quis festa de debutante e negou uma viagem para a Disney: a literatura feminista inevitavelmente a levou à leitura marxista e agora é uma feminista-marxista. Mickey who? Michael, o garoto que senta duas fileiras à direita, vestes escuras e dono do cabelo mais l-i-n-d-o entre os meninos do ensino médio; ela e outras seis são suas namoradas – ele nunca fica sabendo disso. Faz alguns meses que não rói as unhas, o esmalte é preto.

A jovem de 17 só usa o cabelo curto, na altura do ombro; suspeita que gosta de meninas também. De presente de formatura do ensino médio ganha uma viagem para Sergipe, a primeira vez num avião. Leva embaixo do braço uma pilha de livros de crônicas (Fernando Sabino, Clarice Lispector, Rubem Braga, Drummond…). Não lê nenhum. Descobriu o amor e acerta todos os clichês com uma tacada só: o primeiro amor é um amor de verão. Chora na volta pra casa, não quer voltar. O esmalte é azul da cor do mar.  

A mulher de 18 anos é legalmente livre, mas vive presa a uma nova roupagem da ansiedade: a versão de si que estuda para os vestibulares. Só lê os obrigatórios da Fuvest. Raramente vê os amigos, que também estão no mesmo barco e que revezam entre si a ladainha vamos-ver-de-marcar!-quando?-poxa,-nesse-dia-não-posso,-tenho-simulado-do-enem. Está ansiosa com os rumos políticos do país; usa roxo em atos contra um candidato. Voltou a roer as unhas. 

A mulher de 19 que está beirando os 20 entrou na faculdade, aprendeu a brindar, flerta com os novos amigos nos corredores e volta tarde para casa. Assiste o jornal da noite com os pais, escuta com pouco interesse sobre uma nova doença que está se espalhando como uma gripe ao redor do mundo. Os especialistas pedem calma e dizem que não é preciso se alarmar. Ela não se alarma. Mulheres que entraram no ensino superior não se desesperam e não roem mais as unhas.

A mulher de 20 não comemora o aniversário, mas se consola ao dizer que ninguém em sã consciência comemora alguma coisa durante a pandemia. Desenvolve diversas personalidades durante o isolamento em casa: canta, dança, borda, pinta e faz balé, odeia lives mas não perde nenhuma de grupos de samba, maratona podcasts de true crime, se mete a fazer pães e tem tempo para chamadas de vídeo para matar a saudade dos amigos. Perde dois conhecidos para a doença. Não se olha mais no espelho; rói as unhas como nunca antes e a frase é “I don’t feel like a part of something”. 

A mulher de 21 anos recebe café com bolo na cama dos pais e irmãos, mas não canta parabéns, não aguenta mais as telas e não tem paciência para videochamada. Os amigos planejam um telefonema à meia-noite e ela dá uma choradinha antes de encerrar a ligação. Brinca por longos períodos com os bichinhos de estimação, que sentem que agora ela os acompanha em mais passeios na rua. Aprende a gostar de gin e faz planos para o momento conhecido como quando-a-pandemia-acabar. Até cogita uma viagem para a Disney depois de ter guardado tanto dinheiro. Lê Cem Anos de Solidão até mais tarde e boceja repetidas vezes pela manhã. O esmalte é marrom nude.

A mulher de 22 tem um quarto da idade da avó, está relendo um romance que a fez acreditar em grandes amores e pensa que o futuro pode ser brilhante. Voltou a uma rotina em que as pessoas não são apenas projeções tecnológicas de si mesmas; mas andam nas ruas, são mais altas ou mais baixas do que ela imaginara e tem menos dinheiro que nunca. Seus cachorros lamentam a diminuição dos passeios; os pais a vêem sempre correndo, seja para pegar o pão na chapa, ou o ônibus e o metrô. Fala gracinhas sobre os namoradinhos para a avó, que suspira: “ah, que saudades dos meus 22 anos!”. 

Mas após recuperar o fôlego necessário para apagar as velinhas, que carregava não apenas um, mas três aniversários; subiu para o quarto e, sozinha e com inúmeras sacolas de presente, a mulher de 22 anos cisma e não reconhece a forma do outro lado do espelho. Uma vida inteira em dois anos que sequer foram, de fato, vividos. A estranha que a encara pelo reflexo carrega histórias que justificam as olheiras embaixo dos cílios inferiores, mas emana um brilho na íris como uma criança que se rebela com a ideia de mal ter experimentado as duas últimas voltas ao redor do Sol. Como podem se tratar da mesma pessoa?

Ela pode afirmar que se tornou mais sábia ou pode se frustrar por sentir que não aprendeu nada? Nos outros lares ao redor do mundo, outras pessoas repetem as mesmas cobranças ao comemorarem os dias de seus nomes, especialmente neste 2022. Talvez porque a alma seja grande e a vida pequena, embora tenham dado suas voltas ao redor do Sol, elas continuem vivas e sem respostas. “Somam-se-me dias/Serei velho quando o for/Mais nada”, é Pessoa quem o diz.

Em frente ao espelho, a mulher que perdeu a conta de quantos anos está fazendo, divide o reflexo com uma jovem e uma estranha com alguns fios grisalhos, enquanto carrega duas frustrações: não consegue decidir a cor do esmalte e tampouco definir se fez aniversários ou se foram os aniversários que a fizeram envelhecer — ou rejuvenescer — sem sentir a passagem do tempo… cartas de quem souber para a aniversariante.