É tempo de ressuscitar os mortos

Cada vez mais limitada a poucos espaços virtuais e à errática disseminação de conteúdos mil, a comunicação online provoca exaustão e saudosismo crítico por tempos de maior pluralidade

por Thiago Gelli

Foto: Thiago Gelli/JC

Ao longo dos anos 1980, uma nova ameaça à comunicação e à arte surgia: a televisão. Na música, a banda The Buggles cantava sobre como o vídeo havia assassinado o estrelato da radiofonia; no cinema, o roteirista David Cronenberg escrevia sobre como o televisor havia se tornado a retina do olho da mente, e logo parte física da estrutura cerebral — afirmações que viriam a compor o longa de terror “Videodrome – a síndrome do vídeo”, acompanhadas pela conclusão de que, de tal modo, o que quer que aparecesse na televisão se tornaria mais real do que a realidade. 

Antes especulação primária sobre a expansão de uma nova tecnologia, hoje tal senso crítico se torna saudosa relíquia de tempos de alfabetização midiática bem difundida. Em 2022, na cauda de três anos de pandemia, quando dispositivos audiovisuais portáteis mediam tudo aquilo que é material e humano (até um simples cardápio de restaurante), o domínio parece mais sufocante do que nunca, e a retaliação por parte daqueles que buscam fôlego, inviável.

A grande promessa da Internet — aquela que criou milhões de jovens ao longo dos anos 2000 e da primeira metade da década passada — era a democratização. Com uma câmera barata, uma ideia na cabeça e o nível certo de desprendimento, você poderia não só encontrar pertencimento em comunidades geograficamente inacessíveis, mas também oportunidades de trabalho condizentes com as paixões que o guiassem. Essa foi a coluna espinal de dezenas de histórias de sucesso, estivessem elas na vida real ou na ficção. Duas décadas depois, uma massa de jovens que hoje se profissionaliza nas comunicações e nas artes encara catatônica a frustração resultante desse passado, desejosa de que o bug do milênio tivesse de fato ocorrido e nos livrado do apocalipse tecnológico.

Enquanto para alguns tal afirmação pode adentrar o território da perigosa “romantização do passado”, para outros (que acreditam que a dita negação, em grande parte, apenas recusa o estudo da história) esse é um problema contundente. As plataformas digitais, pregressos bastiões do futuro, hoje se concentram na mão de muito poucos, que se contam nos dedos. Desses poucos, nenhum reflete as esperanças ou mesmo os interesses dos jovens usuários das plataformas que dominam — muito pelo contrário. 

As redes sociais — hoje utilizadas como meio único para a promoção de debates, divulgação de trabalho jornalístico e fomento de produção artística — são terreno orquestrado e algoritmicamente monitorado por membros do topo do status quo, que não pestanejam em manipular a disseminação de informações e ofícios que o contrariem. 

Mark Zuckerberg, por exemplo, há pouco esteve no centro do escândalo Cambridge Analytica, empresa privada que utilizava o Facebook para minar dados de usuários a fim de influenciar eleitores. Quando questionado, ele afirmou não saber se estava monitorando como a empresa utilizava sua rede. Já no mês passado, em 4 de abril, o jornalista Ronan Burtenshaw denunciou o silenciamento sistêmico de queixas contra aluguel abusivo no Facebook, que bloqueava anúncios relacionados à pauta por “prática discriminatória”.

Aí vai uma boa: hoje o Facebook nos impediu de promover nosso artigo sobre recordes de preço de aluguel porque seria ‘discriminação’ com… proprietários. Pedimos que o bloqueio fosse resolvido: nada. A censura por grandes empresas de tecnologia está insana” disse o repórter em um tuíte.

Mais recentemente, a compra do Twitter por Elon Musk acendeu debates a mil dentro da própria plataforma comprada, além de ter estimulado muitos a abandoná-la, vide posicionamentos LGBTfóbicos do magnata, o histórico de sua família com o Apartheid na África do Sul e a escala gigantesca de sua demonstração de riqueza, entre outros pontos. O abandono, no entanto, foi, em grande parte, momentâneo e de impacto irrisório para o sustento do aplicativo do pássaro. Não é culpa dos internautas: a internet da contemporaneidade é um labirinto inescapável, mesmo que composto por pouquíssimos corredores. 

Em um irônico ápice da erosão da pluralidade de imprensa e suas condições de trabalho, a condição de existência para toda e qualquer intenção de alternatividade é a subjugação às plataformas hegemônicas, que então decidirão pelo sucesso das ideias compartilhadas através do “alcance” ofertado arbitrariamente por algoritmos. O alcance, afinal, é a nova moeda, mesmo que não pague por qualquer direito básico da dignidade humana. 

Para além de preocupações acerca do sustento daqueles condenados à vocação jornalística, mesmo a satisfação intelectual se torna escassa, já que o encontro da divulgação do trabalho ao público deve passar por outro obstáculo: a inevitável exaustão causada pela saturada e errática web, que oferece uma colagem inesgotável de conteúdos escritos sem qualquer escopo coeso ou intenção editorial. O cérebro já não consegue mais ser uma entidade interpretativa e engajada, mas se contenta com o estado de mero veículo para impulsos reativos a peças de publicidade. 

Nesses tempos, um retorno a caminhos do passado parece mais do que apropriado. Jornais impressos, revistas e zines capturam o poder de uma produção apurada, atenciosa e criteriosa, além de irrestrita da diagramação única de caixas de texto online, que condiciona inclusive o presente texto, lido sobre um fundo branco desinteressante e cansativo aos olhos. 

Cercear os meios de se pensar, produzir e disseminar jornalismo é também cercear a liberdade de imprensa — envolta em silêncio não pela quietude de uma mordaça, mas pela potência ensurdecedora da cacofonia virtual. A esperança repousa em espaços de aprendizado como o ambiente universitário, no qual estudantes ainda não são plenamente condicionados à frieza e à formatação desumanizante do mercado e podem experimentar e fomentar inovação (mesmo quando ela repousa na retomada do passado). A conformidade a esquemas de produção definidos não por conteudistas, mas por bilionários avessos ao objetivo do quarto poder ofende as bases formativas que deveriam guiar jovens jornalistas e potencializar seus nichos da comunicação. 

Para se entregar à melancolia, basta pensar na pletora de publicações históricas do século passado — que se tornaram históricas justamente por seus nichos, identidade visual e escolhas editoriais. O Lampião da Esquina, jornal gay que marcou os anos finais ds Ditadura, é um dos raros registros de imprensa propriamente LGBT+ no Brasil, tendo promovido temáticas que mantêm sua pertinência até hoje, além de comprometimento com princípios tidos como “imorais” para a época. Quarenta anos depois, a publicação teria que censurar parte considerável de seu conteúdo — especialmente menções ao cinema da Boca do Lixo e à pornochanchada — dada a moderação púdica das principais redes sociais, que bane conteúdo sexual em nome de crianças que, supostamente, nem podem acessá-las.

Pior ainda, é fácil imaginar como o Lampião e outros jornais da época se mesclariam à massa amorfa da mídia online, composta por escritores intercambiáveis e fidelidade única ao engajamento que a sustenta, clickbaits et al. Quando tudo parece distante e infértil, passear pela memória do jornalismo não é trivialidade nem exercício intelectual, mas necessidade de existência. O mundo está imaterial, barulhento e inóspito demais para seu próprio bem. 

Em “Videodrome”, após ser corrompido pela máquina televisiva, o protagonista recusa a passividade e se torna uma espécie de vingador, cujo corpo pode passar por alterações que, por mais que proporcionadas por seus delírios tecnológicos, não são mais subjugadas à administração midiática abusiva de sua distopia. Em suas falas, ele é “a palavra do vídeo em carne viva”. Não é uma má ideia. A palavra virtual — aquela antiga expectativa de pluralidade, transgressão e criação — pode muito bem, enfim, prosperar através da boa, velha e agora repensada celulose.