Entre pontos e cadernos, o despertar

Muitos estudantes da USP conciliam trabalho e estudos, mas nem sempre o acolhimento adequado espera por eles na sala de aula

por Luanne Caires

Arte: Luanne Caires/JC; Foto: George Campos/USP Imagens

São seis horas da manhã. O despertador de Maíra toca pela terceira vez, marcando o fim de uma soneca que passou rápido demais. Ela precisa se levantar e dar início a mais um dia em que trabalho e estudo se emendam na sequência de horas, dos primeiros raios de sol até a luminosidade artificial da madrugada. 

Maíra está no segundo ano de graduação na USP. Integrante dos 49,4% dos calouros de 2021 com renda familiar bruta entre um e cinco salários mínimos, ela trabalha desde antes de ingressar na universidade, como forma de contribuir para a subsistência da família. Ela sabia que conciliar o trabalho de nove horas diárias e as aulas no período noturno não seria fácil. Mas o brilho nos olhos por ocupar um lugar com o qual sonhou por tanto tempo trazia a motivação necessária para enfrentar o cansaço, o déficit de sono e a falta de tempo para os amigos e para o cuidado consigo mesma. Vinda de uma dura realidade no ensino público, como 51,7% dos alunos matriculados na USP junto com ela, Maíra via a universidade como um local para desafiar seus conhecimentos, encontrar inspiração e apoio nos professores e crescer em termos pessoais e profissionais. 

Ela encontrou um pouco de tudo isso, certamente. Mas também um punhado de frustrações. No primeiro ano, com a pandemia de covid-19, o desânimo e as dificuldades didáticas de boa parte de seus professores eram, de alguma maneira, compreensíveis. Assim como ela e seus colegas, os docentes precisavam lidar com a solidão de uma sala de aula virtual, com as inseguranças pedagógicas causadas pela incerteza de quando retornariam ao campus e com as dores públicas e privadas decorrentes da crise sanitária, econômica e social marcada por mais de 600 mil mortes em consequência do coronavírus — e de outros vírus metafóricos que infectam o Brasil. 

No segundo ano, com o retorno às aulas presenciais em março de 2022, a expectativa era alta. Finalmente estariam todos juntos, com a sala de aula física, material, funcionando com um caldeirão efervescente de ideias, orientações e aulas produtivas, coerentes e, ainda que pesadas e nem sempre divertidas — pois não só de diversão funciona o processo de ensino e aprendizagem —, ainda assim capazes de fazer refletir sobre novos aspectos do mundo e de sua profissão. Mais uma vez, Maíra encontrou um pouco disso. Mas também um punhado de professores ausentes, desarticulados, pouco empáticos e tão ou mais perdidos em suas próprias disciplinas quanto os atônitos estudantes aglomerados em frente à lousa. 

Ao ouvir seu despertador, que em mais um dia toca às seis da manhã, após meras cinco horas de sono, Maíra pensa nos afazeres que tem pela frente, nas horas extras acumuladas nas últimas semanas, nas três trocas de ônibus necessárias para chegar do local onde trabalha à Cidade Universitária e, depois, à sua casa. Ela pensa nas baixas temperaturas que marcam o início deste inverno paulistano e no frio que assola seu corpo e sua mente em uma sala que, às vezes, conta com nenhum professor e apenas metade dos estudantes que deveriam estar ali.

Ainda há espaço para muito aprendizado e crescimento na universidade. Os problemas, por mais pervasivos que sejam, não são capazes de minar a importância do conhecimento produzido neste lugar. Mas é preciso manter acesa a chama da motivação, da criatividade, do pertencimento, da possibilidade de permanência. 

Maíra pensa na valorização do trabalho dos professores, efetivos ou temporários. Em 2017, alguns anos antes de ela chegar à USP, o número de docentes temporários com contratos de 12 horas de trabalho por semana havia triplicado no triênio. A remuneração era menor do que dois salários mínimos, inclusive para quem tinha título de doutor. As funções, restritas à sala de aula, sem pesquisa ou extensão. Maíra se lembra de que foi um professor temporário que a recebeu na primeira aula, em uma das disciplinas que deveria ser a base para todo o seu curso. Ele foi ótimo, apesar de tudo. 

Olhando pela janela, ela pensa também na valorização dos alunos, no acolhimento, no entendimento de que o perfil dos estudantes da USP mudou e passou a incluir cada vez mais pessoas que já não dispõem das 24 horas do dia para se dedicar exclusivamente à universidade — a menos que lhes sejam oferecidas condições para isso. A mudança ocorre há tempos, mas, só em 2022, aos seus 88 anos, a USP criou a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), para coordenar ações voltadas a políticas afirmativas e de permanência estudantil, integrando-as ao ensino, à pesquisa e à extensão. 

Quem sabe na comemoração dos 90, quando Maíra também estará celebrando o último ano de seu curso de graduação, a USP e a estudante possam festejar juntas a proliferação de aulas mais completas, acolhedoras e motivadoras, tanto para os professores quanto para os alunos. Aulas que acendam um brilho que nem o longo trajeto de ônibus, a volta para casa na madrugada e o som do despertador às seis da manhã possam apagar.