O museu a céu aberto que a USP poderia ser

Conheça a história por trás de algumas das esculturas que compõem o panorama da Cidade Universitária

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por Manuel Savoldi

Monumento a Ramos de Azevedo, por Galileo Mendabili. Fotos: Manuel Savoldi/JC

Em 2013, houve a publicação do mais recente Plano Diretor em relação ao planejamento e gestão da Cidade Universitária. Em seu conteúdo, é proposta a criação de um “Circuito de Monumentos, Esculturas e Arquitetura da Cuaso [Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira]”, assim como a “sistematização da linguagem visual visando obter melhor qualidade informativa para os seus usuários e minimizar a poluição visual”. Ótimas iniciativas, mas que, efetivamente, não saíram do papel.

Assim, aqueles que buscam apreciar as esculturas que compõem parte do panorama uspiano irão encontrá-las em estados de preservação variados, sem uma infraestrutura adequada que permita seu usufruto seja pela comunidade acadêmica, seja por meros admiradores dos artistas renomados que fazem parte do “acervo”.

Este patrimônio material da Universidade está sujeito a uma gestão difusa, com limites pouco claros de onde começa a atribuição de um órgão e termina a de outro. O Centro de Preservação Cultural (CPC), por exemplo, ligado à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, tem como sua principal atividade “assessorar a Universidade nas questões relativas à inventariação, preservação, intervenção, divulgação, incorporação e alienação dos bens culturais”, como diz seu site institucional. Mesmo assim, o CPC não possui nenhuma relação direta com a manutenção de tais bens. As responsabilidades pelo patrimônio escultórico estão divididas entre os diversos institutos, faculdades e órgãos administrativos da USP, não existindo a sua organização como uma coleção ou com uma política curatorial definida, mas somente sucessões de casos particulares, campo de disputas e discursos variados.

Esse problemas são narrados por Reinaldo Luiz dos Santos, em sua dissertação de mestrado denominada “Esculturas no campus Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira: Arte e Conservação”, como nessa passagem: “as obras pertencentes ao MAC e que se encontram instaladas em frente ao Espaço das Artes, da ECA, não apresentam manutenção devido à dificuldade em enviar mão de obra da sede até o Butantã. Este problema não existia quando o museu ainda se encontrava na Cidade Universitária, visto que a equipe de conservadores encontrava-se no local”.

Assim, surge a necessidade de ações de caráter mais amplo e universal que permitam uma mudança da relação entre as esculturas, o entorno e os transeuntes, tal qual a colocada no Plano Diretor. Só assim, o conjunto de obras presentes se tornará um acervo de fato, não só possibilitando sua visitação e apreciação, mas fortalecendo a Universidade como um polo de difusão cultural gratuito e democrático, concretizando-a, verdadeiramente, como um museu a céu aberto.

No espírito de aproximar a comunidade uspiana da riqueza cultural presente nas esculturas espalhadas pela Cidade Universitária e incentivar a valorização desse patrimônio material, o JC investigou a história por trás de algumas dessas obras. Clique nas fotos marcadas para ler mais sobre as elas:

Os pais fundadores

As três primeiras esculturas fazem referência, de certa forma, ao mito fundador da Universidade e de seu principal campus, com narrativas ufanistas e laudatórias, homenageando pessoas consideradas essenciais em seu processo de formação. São três homens, membros da elite paulista com circulação nas altas esferas da política e que, em dois casos, foram participantes ativos da Revolução Constitucionalista de 1932. Nelas, há uma evocação do caráter “quatrocentão” que a USP carregou durante suas primeiras décadas — com resquícios até os dias atuais —, visto o interesse que a oligarquia paulista possuía em transformar o estado em um polo intelectual. 

Monumento a Armando de Salles Oliveira
Homenagem a Ernesto de Souza Campos
Homenagem a Júlio de Mesquita Filho

O Relógio Solar e o Monumento à Liberdade

Relógio Solar

Junto com a Homenagem a Júlio de Mesquita Filho, o Relógio Solar é a outra obra Caetano Fraccaroli na Praça da Reitoria, fruto de uma solicitação direta de Hélio Guerra Vieira, reitor da Universidade em 1985. Dois anos mais tarde, seu criador viria a falecer. Com a obra ainda inacabada, Vera Pallamin, professora titular da FAU assumiu a supervisão do projeto até que fosse finalizado em 2003, com a instalação do piso de pedras portuguesas que permite a marcação do horário. 

A sua implantação só foi possível devido aos estudos dos astrônomos Roberto Boczko e Paulo Benevides Soares, professores do Instituto Astronômico e Geofísico. Como os cálculos foram realizados em relação à latitude do local da obra (23° 33′), seu horário difere levemente do oficial, o de Brasília.

Fraccaroli também é o criador da estátua intitulada Monumento à Liberdade, que ocupa um local de destaque na frente do Hospital Universitário.

Concebida em 1958, ela inicialmente era para ter feito parte de um projeto de teatro grego realizado pelo artista ao lado da FAU, mas que não saiu do papel na década de 1970.

A obra é uma das duas releituras presentes na Cidade Universitária da Vitória de Samotrácia, estátua representando Nice, deusa grega vitória, que possuía a forma de uma mulher alada. Descoberta em uma expedição de Charles Champoiseau em 1863 pelo Mar Egeu, a peça se tornou uma das esculturas mais reproduzidas e redesenhadas da história.

Monumento à Liberdade

O Espaço das Artes e suas obras

Quando ocorreu a dissolução temporária do antigo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em 1963, foi criado o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), que herdou um acervo composto em grande parte “pelas coleções do casal de mecenas Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo, coleções de obras adquiridas ou recebidas em doação durante a vigência do antigo MAM e prêmios das Bienais de São Paulo, até 1961”, explica seu site institucional.

O MAC USP ficou sediado em um prédio envolto de espaçosos gramados que foram transformados em um jardim de esculturas com obras do acervo até 2012, quando começou a ser transferido para a antiga sede do Detran de frente para o Parque Ibirapuera, um edifício icônico projetado por Oscar Niemeyer.

Quando a transferência definitiva foi efetivada, em 2016, o antigo prédio adjacente à Praça do Relógio foi cedido para a Escola de Comunicações de Artes da USP (ECA), tornando-se não só seu espaço expositivo, mas também sendo utilizado para aulas, eventos e guarda de acervo.

A saída do MAC USP levou à retirada de diversas obras que compunham seu jardim de esculturas e a maioria das que sobraram foram deslocadas para compor os espaços vazios recém-criados. Mesmo com essa diminuição de exemplares, o Espaço das Artes (EdA) ainda se mantém como local com a maior densidade de estátuas na Universidade. 

Ultramarinho
Perfis
Quadrado, Círculo e Disco Fragmentado
Canto II
Catedral
Vitória de Samotrace 2001

Jardim Externo da ECA

Ao se aproximar da Escola de Comunicação e Artes (ECA), é possível perceber que o jardim externo faz jus ao nome da instituição, com algumas obras ornando o espaço. O “Lugar com Arco”, de autoria da professora sénior Norma Tenenholz Grinberg, do Departamento de Artes Visuais, é composta por duas peças de argamassa armada com cor de terra.

A primeira, maior e em forma de disco — com 6 metros e meio de altura —, conta com um pequeno túnel que a atravessa, com a segunda sendo o volume que se encaixaria ali, completando-a. A escultura saiu do papel em 2000, mas a ideia e os esboços já estavam presentes na tese de doutorado defendida por Grinberg.

Outra obra, a segunda de Caciporé Torres instalada na Universidade, não possui título, mas foi apelidada carinhosamente de “árvore”, por motivos óbvios. Com 7 metros de altura e toda constituída em metal, tem seu volume principal composto por placas e cilindros, com as marcas de solda aparente. Seu volume secundário tem forma piramidal e é a parte mais alta da escultura, atraindo olhares com sua pintura automotiva vermelha.

Sem Título (Árvore)
Lugar com Arco

Torre do Relógio

A obra mais famosa da USP foi desenvolvida nos anos 1950, projeto chefiado pelo proeminente arquiteto paulistano Rino Levi. Mas uma das características mais marcantes da obra, seus desenhos em baixo e alto relevo que ocupam as laterais, foram desenvolvidos por Elizabeth Nobiling, professora da FAU convidada por Levi para projetar e realizar a parte escultórica. Não à toa, os desenhos possuem forte semelhança com o estilo moderno de Victor Brecheret: a professora foi sua auxiliar após voltar da Academia de Belas Artes da Universidade de Berlin, na Alemanha. 

São 12 desenhos, seis de cada um dos lados, representando o Mundo da Fantasia e o Mundo da Realidade. O da Fantasia tem sua face voltada para o Edifício da Antiga Reitoria, sendo composto, de cima para baixo, pela Poesia; Ciências Sociais; Ciências Econômicas; Música, Dança e Teatro; Artes Plásticas e Arquitetura; e a Filosofia. Já o da Realidade, com a face virada para Edifício da Nova Reitoria, é composto, de cima para baixo, pela Astronomia; Química; Ciências Biológicas; Física; Ciências Geológicas; e Matemática. 

Embora tendo sido pensada ao mesmo tempo em que se desenvolviam os planos para a construção do campus, o projeto da Torre correu em separado, sendo uma doação da colônia portuguesa em São Paulo à Universidade. Sua pedra fundamental foi lançada em 1954, fazendo parte das comemorações do quarto centenário da cidade, onde estava presente o representante da Casa de Portugal, que atuou intermediando a doação. Mesmo com a realização deste evento, as obras atrasaram — como quase todas as que ocorrem na Universidade —, sendo de fato iniciadas somente em 1973, quase 20 anos depois.

Além dos desenhos, a Torre conta com um relógio de cada lado e, originalmente, um sino, que foi substituído pelas badaladas dos relógios. Ela está situada no centro de um espelho d’água circular, que possui ao seu redor a seguinte frase, escrita no chão de pedra portuguesas: No Universo da Cultura, o Centro está em toda a parte. A frase é de autoria de Miguel Reale, reitor da USP em 1973, quando se efetivou a construção. Na década de 1990, foi realizada uma remodelação urbana e paisagística que deu à praça os moldes que conhecemos atualmente. 

Monumento a Ramos de Azevedo

Ramos de Azevedo foi engenheiro e arquiteto, um dos grandes responsáveis pelas mudanças de paradigma na urbanização paulistana, calcando o caminho para o surgimento da metrópole. Autor de grandes projetos na cidade como o Theatro Municipal, o Palácio da Justiça, o Liceu de Artes e Ofícios (atual Pinacoteca) e a antiga Escola Politécnica — sendo fundador destes dois últimos. 

Após seu falecimento, em 1928, surge naturalmente a vontade de prestar uma homenagem à altura, de modo a deixá-lo incrustado na mitologia paulistana. Assim, nasce a Comissão Pró-Monumento a Ramos de Azevedo, composta por admiradores e colegas. Sem qualquer apoio de autoridades oficiais, o grupo conseguiu 3212 assinaturas para custear a obra. Para a escolha do projeto foi realizado um concurso, do qual Galileo Emendabili saiu vencedor. Ele, grande escultor ítalo-brasileiro, também foi vencedor do concurso para o Monumento aos Heróis Constitucionalistas de 1932, conhecido como Obelisco do Ibirapuera.

Após sua finalização, o monumento foi instalado na Avenida Tiradentes, em frente ao prédio do Liceu de Artes e Ofícios e da Estação da Luz, no ano de 1934. Por isso que, em certos momentos, ele pode parecer sem conexão com o lugar que ocupa na Cidade Universitária, visto que foi projetado para se encaixar naquele contexto da cidade, o centro de uma larga avenida ladeada por prédios imponentes.

Ele permaneceu em seu logradouro original até 1967, quando a região passou pelas obras para a construção da linha azul do metrô. O conjunto foi desmontado e realocado para o Jardim da Luz até que José Carlos de Figueiredo Ferraz, prefeito da cidade e professor da Escola Politécnica, iniciou um processo que acabaria por instalar a obra na porta da Escola que Ramos de Azevedo fundou, em uma tentativa clara e bem-sucedida de resgatar o significado que possuía na Avenida Tiradentes. 

Composta por diversas figuras, possui, no topo de suas colunas, um conjunto representando Progresso e Vitória, através de um homem montado em um cavalo alado, carregando nas mãos a deusa Nice. Quatro figuras femininas restam ao lado das escadarias, representam a Escultura, a Pintura, a Arquitetura e a Engenharia. Na frente da base de granito, há uma estátua de Ramos de Azevedo e, atrás dela, um grupo de figuras masculinas representando o Trabalho.

Memorial em Homenagem aos Membros da Comunidade USP que Foram Perseguidos e Mortos por Motivações Políticas Durante o Regime Militar (1964-1985)

Idealizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), a construção deste memorial, em frente ao Auditório Camargo Guarnieri, na Praça do Relógio, iniciou-se em 2011. Para a realização da obra, o NEV firmou um consórcio com a Fundação de apoio à Universidade de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Petrobrás, de acordo com matéria veiculada no JC na época, tornando-se parte do projeto Direito à Memória e à Verdade. 

A monolítica obra contém os nomes de membros da comunidade que foram perseguidos e mortos durante o regime e trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante) e da Declaração Sobre a Proteção de Todas as Pessoas Contra os Desaparecimentos Forçados (Nenhuma pessoa será submetida a desaparecimento forçado).

Durante sua instalação, uma placa no canteiro de obras suscitou protestos por parte da comunidade, ela dizia: “Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964”. Essa reação resultou em um posicionamento por parte da ministra Maria do Rosário, responsável pela pasta, que solicitou sua substituição ao reitor da Universidade. À mesma matéria do JC, ela disse: “O episódio mostra a importância do projeto Direito à Memória e à Verdade, que demonstra que em 1964 houve um golpe seguido de uma ditadura”.


Reportagem realizada com base no livro “Obras Escultóricas em Espaços Externos da USP”, da série Cadernos CPC; na dissertação de mestrado “Esculturas a Céu Aberto: inventário 2009 no campus ‘Armando de Salles Oliveira’ da Universidade de São Paulo”, de autoria de Luciana Benassi Perrotti; e na dissertação de mestrado “Esculturas no campus Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira: Arte e Conservação”, de autoria de Reinaldo Luiz dos Santos.