A constelação Mostarda

Coração, coragem, medo e vulnerabilidade preenchem o universo que habita Stephany Oliveira Francisco, mãe e estudante da USP

por Alessandra Barrozo

A conversa com Mostarda é mais uma expressão de seus olhos estrelados que de suas palavras. Foto: Alessandra Barrozo/ JC

Um par de olhos que brincam de sorrir para além dos lábios e dos dentes. Foi assim que conheci Stephany Oliveira Francisco, no dia 29 de abril. Ao cheiro do café de dona Monyca — ela com um capuccino, e eu com um expresso fervente — compartilhamos, na vivência da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, as nossas também.

Por aqui, a mulher de sorriso fácil que conheci no coletivo negro da ECA, o Opá Negra, atende também por outro nome: a chamam de Mostarda. Quem, assim como Stephany, esteve desde o começo da vida em contato com a Bíblia, deve se lembrar do texto escrito em Mateus 17:20:

“[…] Eu asseguro que, se vocês tiverem fé do tamanho de um grão de mostarda, poderão dizer a este monte: ‘Vá daqui para lá’, e ele irá. Nada será impossível para vocês.” Mateus 17:20

É a referência que a lembra sempre a potência que floresce da fé — que extrapola, aqui, qualquer religião — mesmo quando nos vemos tão pequenos, tão humanos. Ao longo dos 25 anos de Steh, a mostarda do texto bíblico ganhou mais camadas. Foi além: sua cor vibrante remete ao poder e à beleza cantados pelo rapper Emicida no álbum AmarElo. Mais um lembrete de potência que vem dos laços, mais uma roupagem de fé que não poderia deixar de lembrar a filosofia africana de Ubuntu: eu sou porque nós somos. E a história de Mostarda é recheada de laços-nós.

O parto da mãe

Moldada às mãos de mulheres, Mostarda nasceu de uma família matriarcalmente forte. Neta de dona Maria Nilza, que, decidida, deixou a casa do marido abusivo, com o coração, a coragem e os filhos nos braços; e filha de dona Geni, que expulsou o marido abusivo de casa, de mesmos coração e coragem herdados da mãe com os quais criou três filhas.

Primogênita da tríade, Steh foi, desde cedo, o exemplo para as irmãs mais novas e orgulho da família, que ungiu sobre ela doses da fé evangélica e do conservadorismo. As boas notas na escola, o jeito inteligente de se expressar — que me impressionou ao vê-la falar sem gaguejar uma única vez enquanto conversávamos, constantemente com um pensamento que possui começo, meio e fim —, a simpatia expressada naquele sorriso que não se intimida, o ingresso vitorioso na faculdade de Pedagogia. Mostarda é a irmã exemplar.

Até que um medo pungente começou a lhe inchar a barriga, as mamas, a apertar-lhe o coração, a tremer-lhe as mãos. Como revelar a gravidez que veio sem aviso, sem planos, sem querer? Não revelou. E, com o medo pendurado nos ombros de tudo o que poderia acontecer dali pra frente, aquele grãozinho começou a crescer, clandestino, esperando com ansiedade o momento em que não seria mais possível camuflá-lo.

O momento chegou junto com a barriga  delatora, que confessou à mãe que esperava por Benjamim. Confessou o receio de sua reação e os vários temores do incerto que veio com a notícia da gravidez. Recebeu, para sua surpresa, um abraço apertado e a primeira linha do que começava a se costurar ali: uma rede de apoio, de afeto e, de amor.

Através do brilho de seus olhos alagados, vi refletido o menino, agora com 5 anos, o presente que chegou uma semana antes do seu aniversário — ele, do dia 2, ela, do dia 11, ambos de outubro —, e que mudou seu jeito de enxergar a vida. Mudou também o meu, quando decidi explorar aqueles olhos transbordantes. Ao falar de Benjamim, eles se pareciam com os do personagem Steven Universo pintado às suas costas, apontei, tinha também estrelas. “Me emociono ao falar dele”, desculpou-se Mostarda, orgulhosa pelo filho.

Stephany entende e respeita o universo que já existe dentro de Ben. Foto: Giovanna Figueredo/ JC

Uma rede de amor e elo

Mostarda ainda estava no início da graduação em Pedagogia quando decidiu por deixá-la para cuidar de Benjamim. Não foi sozinha que começou a maratona da nova vida que se estreou no dia 2 de outubro de 2016: acolhida primeiro pelos braços da mãe, na casa em que ainda mora, em Interlagos, encontrou a força que precisava para voltar à vida acadêmica em meio ao caos da pandemia. Em 2021, ingressou no curso de Educomunicação. Foi a graduação incomum, que provoca um franzir de testa em quem ouve o nome, que teceu mais um bocado de fios na rede de amor que envolve Stephany.

Por meio da Educom, conheceu, numa coincidência que surpreende, três outras mulheres que vêm tecendo a maternidade junto com o diploma, cada uma à sua maneira. Juntas. Stela, Larissa, Milca e Stephany chegaram na ECA no mesmo ano. Encontraram-se, na mesma turma, no mesmo turno, na mesma ternura ventura de ser mãe, porque era preciso — peço a licença de pegar emprestadas as palavras de Guimarães Rosa.

Era preciso que compartilhassem um espaço que, elas sabem bem mais do que eu, não foi pensado para recebê-las. A cada aula, a cada vez que pisam no prédio da Escola, a cada semestre, avançam em construir um lugar que lhes caiba, numa rebeldia que, essa sim, querem ver desabrochar nos filhos. E num curso que se pretende formar profissionais que encurtem as distâncias, ampliando o acesso, o entendimento e a participação social de grupos muitas vezes marginalizados por meio da integração entre educação e comunicação, doses de ruptura ao status quo são muito bem-vindas.

Ser mãe na USP não é fácil. É apenas na pós-graduação que há o apoio formal da licença maternidade, momento natural, que transpassa a vida de alguém como a tantas outras situações. “Parece uma reiteração do que se espera para nós [estudantes], que a gente só tenha filho depois de se formar, como se a graduação não fosse espaço para a maternidade”, conta Mostarda, com a clareza de quem entende a transgressão que comete ao estar aqui.

Quando peço, dias mais tarde, que Mostarda me diga em que situações mais sente o peso do despreparo das instituições para lidar com a maternidade, as redes de apoio voltam à pauta, mais uma vez. A razão sai sem titubear, sem dúvidas: “A gente tá sempre em círculos de apoio. É assim que se cria uma criança”.

Em seus áudios, em que expressou entusiasmo e fluidez que me fizeram sentir novamente o gosto de café da nossa primeira conversa, Steh me deu uma ideia breve da rotina para permanecer na USP. Mãe, irmã mais nova e irmã do meio revezam com ela a escala de buscar e levar Ben à escola, de cuidar do menino enquanto Steh trabalha, o que ocupa manhã e tarde, e estuda, à noite. A alternativa da creche, que abriria uma janela para a mãe cursar com mais tranquilidade e estabilidade a sua graduação — vale lembrar: a USP só oferece o curso de Educomunicação no período noturno — não encontra espaço, porque a maioria delas só fornece suporte durante o dia.

Para além disso, a mobilidade, já difícil para quem mora a grandes distâncias das regiões centrais de São Paulo, ganha camadas mais profundas quando se tem uma criança. Nas noites de inverno da capital paulista, cruzar a cidade é uma tarefa dolorosa. Aos 6 graus, permanecer em casa, mantendo o filho no calor e conforto de casa, não compete com a necessidade de ir à aula: é necessário ficar.

É por causa dessas e de outras tantas carências, faltas e injustiças presentes na USP, que se estende por quase todos os espaços, que Mostarda assumiu também o desafio da representação discente, espaço que conquistou para fazer da experiência universitária melhor para elas e para mim, para quem já está aqui e para quem ainda vai chegar. (Não pergunte quantas horas tem o dia de Mostarda. E pasmem: ela também pratica softbol, numa suspeita pessoal de que o faça na vigésima quinta hora que Cronos lhe concedeu).

Qual é a cara do seu medo?

A segunda conversa com Stephany — tão prazerosa quanto a primeira e coroada com a presença divertida de Benjamim — descortinou uma camada difícil de se abordar. Diante da potência que permeou todo o papo do primeiro dia, o medo encontrou brecha para se revelar.

“De não ser boa o suficiente”. E sorri, porque o medo que habita em Mostarda faz visita em mim também, e bem, quem nunca? — mais um vislumbre do espelho que vejo nas retinas de Steh. Medo esse que aparece teimoso mesmo com palavras contrárias vindas de quem a rodeia, e desconfio que, em parte, por causa delas, também.

Ouvi de Tiago, amigo de Mostarda, futuro educomunicador como ela: “Quando Mostarda fala nas aulas, todo mundo escuta, entende melhor. Parece que tudo faz mais sentido.” Ouvi essa e mais meia dúzia de suas qualidades, suficientes, nos poucos minutos que tivemos para falar. Percebi que, às vezes, o medo é convincente em fazer acreditar que errar crava na testa uma mancha de insuficiência. E, óbvio: não é. Mostarda sabe disso.

Sabe também que não pode controlar o universo que se expande, desde agora e a cada dia, dentro de Ben. Admite sentir medo desse descontrole, desse mar de possibilidades para o futuro do filho, que inclui um abismo entre o que ela ensina e o que ele guarda. Sabe que não pode programar o cérebro, as crenças, a personalidade de Benjamim conforme quer, do jeitinho que quer. Ainda assim, teme, porque, em mais um furto a Rosa: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.”

Foto: Giovanna Figueredo/JC

Quem você mais admira?

  Fugindo do clichê que eu adoro e ela também, Steh deixou para a mãe e para a avó a observação de que sim, as admira tanto que não pode deixar de citar. Mas dessa vez vai ficar com o nome de Stela. Amiga, guru, inspiração: Stela é muito para Mostarda, que fala com carinho da mãe de Caetano, tão jovem quanto Ben. Admira o orgulho que a amiga consegue expressar de seu filho, um jeito que procura replicar a Benjamim. São a sensatez e a sensibilidade de Stela que lhe tira, muitas vezes, grande parte do peso e da culpa que o erro carrega na jornada da maternidade.

O que quer Stephany?

Estudar na USP é descobrir o tempo todo o quão maior do que pensamos é o campo que podemos explorar. Stephany descobriu recentemente uma nova paixão em meio a esse terreno tão fértil. Através da atuação como representante discente, iniciada esse ano, e do engajamento no coletivo Opá Negra, viu na política um caminho para praticar o que acredita. Ainda em processo de descascar as camadas dessa cebola, sente vontade de transformar o espaço à sua volta em um outro mais justo, mais acolhedor. A começar pela ECA e, quem sabe, para além dos muros da Universidade.

Que referências marcam, guiam, inspiram você?

O álbum AmarElo, do Emicida (Spotify). A escritora bell hooks, em especial o livro “Ensinando a transgredir” (VMF Martins Fontes). E o programa Greg News, da HBO Brasil.