A fome tem rosto e gênero: 47% das mulheres brasileiras não têm certeza se farão a próxima refeição

Desde o início da pandemia, o número de mulheres em situação de insegurança alimentar aumentou e pesquisadoras explicam motivos por trás dessa vulnerabilidade

por Giovanna de Oliveira Figueiredo

Imagem: Adobe Stock/Kuarmungadd

Uma pesquisa divulgada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em maio deste ano, mostra que a insegurança alimentar teve um salto no Brasil durante a pandemia. Em 2021, o Brasil tinha cerca de 36% da população em situação de fome: um aumento de 6% comparado aos índices de 2019, antes da pandemia de Covid-19. 

No caso das mulheres, os dados são ainda mais alarmantes: 47% das pessoas do gênero feminino estavam sofrendo com a fome no ano passado, contra 33% de 2019. 

Um número curioso dessa mesma pesquisa é a relação dos homens com a fome. Durante a pandemia, a quantidade de indivíduos do gênero masculino em situação de insegurança alimentar diminuiu um ponto percentual em comparação ao ano anterior.

A pesquisadora Adriana Salay, doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo, estuda a fome no Brasil sob a perspectiva da falta de acesso aos alimentos devido à renda. Ela acredita que um dos motivos para a maior vulnerabilidade à fome por parte das mulheres está relacionada, principalmente, à desigualdade salarial e a menor inserção no mercado de trabalho.

Mulheres recebem, em média, 20% a menos que os homens, de acordo com um estudo da consultoria IDados com dados do IBGE. Essa diferença nos ganhos ocorre mesmo quando os dois gêneros ocupam o mesmo cargo, têm o mesmo nível de escolaridade e a mesma idade.

Outra pesquisa feita pelo IBGE, que avaliou a queda na renda do trabalhador brasileiro no quarto trimestre de 2021, também mostra que a diminuição do rendimento médio foi mais intensa para as mulheres (11,2%) do que para os homens (10,4%), que tiveram um recuo abaixo da média total no país (10,7%).

Outro motivo apontado por Salay para uma maior insegurança alimentar das mulheres durante a pandemia é o papel de cuidar do próximo. “Com o fechamento das escolas, as crianças ficaram em casas e muitas mulheres saíram do mercado de trabalho para que pudessem exercer o cuidado, que é uma função não remunerada e tida socialmente como um papel feminino”.

Cibele Cheron, doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também acredita que esse fator é um dos responsáveis pela maior vulnerabilidade à fome por parte das mulheres. 

A pesquisadora diz que muitas mulheres ficaram impossibilitadas de retornar às posições de trabalho remunerado devido ao cuidado doméstico. No contexto da pandemia, as mulheres tiveram que substituir seus empregos pelo cuidado doméstico de crianças, idosos e adoentados. 

Ainda sobre esse assunto, Salay afirma: 

Adriana Salay

“Algumas pesquisas mais recentes mostram que a mulher é a primeira pessoa que passa fome na casa porque elas fazem a gestão do alimento no lar. Com isso, elas fazem um mecanismo de dar comida primeiro para as crianças, depois para os parceiros e, por fim, para si”.

 

Essa estratégia faz com que, mesmo em famílias nas quais a insegurança alimentar é leve, as mulheres fiquem em desvantagem por serem as últimas consideradas na alimentação, segundo a doutoranda.

Em um cenário de queda da renda média mensal e aumento da inflação, é possível traçar relações para a fome de mulheres. Quase metade das famílias brasileiras, cerca de 45%, é chefiada por mulheres, de acordo com um levantamento do Ipea. São esses os lares mais vulneráveis à fome devido à dificuldade de inserção no mercado de trabalho e às desigualdades salariais.

O problema da fome afeta as mulheres muito antes da pandemia. Historicamente, pessoas do gênero feminino sofrem mais com a fome do que os homens. Em 2019, antes dos surtos de coronavírus, 33% das mulheres já estavam em situação de insegurança alimentar, enquanto 27% do gênero masculino passavam pelo mesmo problema.

Para as pesquisadoras entrevistadas, com o objetivo de amenizar o problema da fome no Brasil, pensando principalmente em mulheres, deveriam ser criadas políticas públicas mais efetivas de combate à insegurança alimentar. Cheron ainda afirma que já existem diversas políticas pensadas para esse propósito, mas o governo brasileiro falha muito em colocá-las em prática.

“Não é falta de política pública o nosso problema. É falta de controle social, é falta de educação para a política pública, é falta de eficácia e efetividade, é falta de análise… Nós temos pautas muito mais complexas do que acreditar que não existem políticas públicas”, diz Cheron.

A doutoranda Salay também vai de acordo com essa ideia. Para ela, programas sociais devem continuar dando prioridade para mulheres com o objetivo de atingir grupos mais vulneráveis de forma eficaz. O Minha Casa Minha Vida, por exemplo, hoje chamado de Casa Verde e Amarela, costuma dar a propriedade da casa para a mulher.

Isso também ocorre no Bolsa Família, no qual a beneficiária principal é a mulher chefe de família. Segundo Salay, esse tipo de direcionamento deve continuar ocorrendo como uma medida para garantir que pessoas do gênero feminino tenham acesso a políticas públicas que podem colaborar para a diminuição da insegurança alimentar.

“Eu acredito que as políticas públicas precisam manter esse direcionamento de gênero visto que as mulheres estão em uma posição muito mais vulnerável e exercem esse trabalho de cuidado na imensa maioria das casas”, conclui a pesquisadora.