“Existem outros tipos de quadrinhos, histórias de pessoas normais, que não eram só de super-herói”

Gabriel Bá, ilustrador de quadrinho que inspirou série da Netflix, volta à USP para debate sobre suas referências e o processo de transpor uma história das páginas para a tela

 

Por Luanne Caires

Gabriel Bá e os personagens Spaceboy e Brás, de The Umbrella Academy e Daytripper, respectivamente, quadrinhos ilustrados por ele. Arte: Sebastião Moura/JC

Uma história está sempre associada a imagens, que podem existir apenas na nossa cabeça ou ganhar uma representação no mundo real. Paulistano paixonado por quadrinhos desde criança, o quadrinistaGabriel Bá cria narrativas e desenhos que vão desde o consolidado universo de super-heróis até o cotidiano das pessoas comuns. Bá formou-se em Artes Plásticas (hoje Artes Visuais) pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA) e ilustra a famosa série de quadrinhos The Umbrella Academy, que inspirou a série homônima disponível na Netflix. Ele e seu irmão gêmeo Fábio Moon são criadores da revista 10 pãezinhos, acumulam premiações no Brasil e no exterior e foram os primeiros brasileiros a ganhar o prêmio Eisner, considerado o Oscar dos quadrinhos.

No último dia 30 de junho, Bá participou de debate noCinusp Paulo Emílio, sala de cinema gratuita localizada na Cidade Universitária. O debate faz parte da mostra 24 Quadrinhos por Segundo, em cartaz de 20 de junho a 08 de julho, com 14 sessões de filmes inspirados na nona arte. 

Com quadrinhos que narram histórias variadas, Gabriel atrai grande quantidade de fãs em sessão de autógrafos. Fotos: Sebastião Moura/JC

A conversa com o ilustrador brasileiro começou logo após a exibição do primeiro episódio de The Umbrella Academy e foi marcada por um clima descontraído. Entre os temas abordados, estão o interesse inicial pelas histórias em quadrinhos, a formação na USP, os desafios de se trabalhar com ilustração, o reconhecimento de quadrinistas brasileiros no cenário internacional e a importância de se contar boas histórias. 

As perguntas foram feitas tanto pela plateia quanto pelo Jornal do Campus, que acompanhou a sessão e destaca os melhores momentos para retratar Gabriel Bá além da série. 

Quando a gente olha para uma obra, é legal saber o que inspirou a pessoa que a produziu. Nesse sentido, qual foi o quadrinho ou os quadrinhos que fizeram você se apaixonar por essa forma narrativa? 

Bom, com certeza os quadrinhos de super-herói me fizeram viciar em quadrinhos. Porque eles têm essa forma de novela, em que todo mês sai um capítulo novo com aquele personagem. 

Eu comprava gibis em um sebo, em uma cidade do interior onde meus avós moravam. E eu lia os gibis e, na semana seguinte, quando ia visitar meus avós, trocava o [gibi] velho pelos novos. Então eu não tinha os gibis. Mas aí eu comecei a ler uma história de super-heróis, especificamente uma que se chamava Superaventuras Marvel, que era uma coletânea, uma antologia. E as Superaventuras Marvel tinham as histórias do X-Men, que, pra quem tem a minha idade e nasceu antes de ter desenho animado dos X-Men na TV, você lia aquilo e falava xis-Men. Então nada mais é do que novela, né? Um monte de personagens, um monte de pessoas que são desajustadas, não são aceitas pela sociedade porque são mutantes e, ainda assim, são heróis. A partir daquele momento eu não queria mais trocar o quadrinho no sebo. Eu queria ir à banca e comprar o novo. E aí eu comecei a acompanhar as histórias. Nessa época, eu nem sabia que existia o roteirista e o quadrinista. Achava que eram a mesma pessoa. 

Mas aí, na mesma época, acabou a ditadura [brasileira] e começou a sair um gibi na banca chamado Chiclete com Banana, que tinha histórias do Angeli, da Laerte. Mas o mais legal para mim eram as histórias da Laerte porque, além dos cenários muito bem desenhados, eram cenários que eu reconhecia, eram ruas da Vila Madalena. Acontecimentos meio surreais sempre, mas acontecendo em lugares que eu conseguia identificar. E eu me conectei com isso, com a história que estava acontecendo. 

Nessa época eu estava lendo tudo. Seja bom ou não. No início da adolescência, você não sabe o que é bom. Se os seus pais ouvem é ruim, mas o resto todo é ótimo. Então eu lia tudo em quadrinhos. Se tinha desenho, eu lia tudo. Então eu fui viciando nisso.

Nos quadrinhos você tem uma estética própria, enquanto a estética da série é, claro, uma adaptação. Como você entende essa mudança na linguagem visual entre as duas mídias? 

Durante muito tempo, antes dessa história de adaptação existir, eu ficava muito mais preocupado com esse tipo de fidelidade da imagem, como os personagens iam ser transpostos. Então [na série] todos os personagens têm uma abordagem um pouquinho mais naturalista, até porque conversa com outro público. O público de história em quadrinho, hoje em dia está se ampliando, mas é um público mais restrito, que está acostumado com personagens mais absurdos. O público que assiste a TV não é assim.

Então, para tentar atingir um público um pouco maior, a gente teve que pegar esses personagens e tentar colocar em um pacote um pouquinho mais realista, um pouquinho mais normal, digamos assim. Quando eu comecei a ver que todas as decisões, todas as mudanças, não só estéticas, mas da história, tinham uma intenção que beneficiava esse produto que era a série de TV, aos poucos eu fui deixando o lado fã, que quer que fique igual [ao quadrinho], e encarando como uma outra coisa. Então pra mim o mais importante é que essa outra coisa seja bem feita, seja bem contada e faça sentido dentro do universo da história da série. 

Hoje, sem rancor do quadrinista falando, muito mais gente viu a série do que leu o gibi. Então para muito mais gente essa é a versão dos personagens, da história, de tudo. E eu acho muito legal quando eles vão para o gibi e falam “Nossa, é diferente”. 

E o que eu acho mais legal, que é mais fácil de transportar para uma outra mídia, é que Umbrella é muito mais do que uma história de super-herói. São esses irmãos que têm que conviver, aprender a conviver, mesmo se odiando.

O artista, de volta à USP, onde se formou, responde com bom-humor e irreverência às perguntas do público.

Você se formou na ECA, que tem um perfil de curso de Artes Visuais mais acadêmico. Quais eram suas expectativas quando você entrou na ECA e, depois, quando saiu? 

Quando entrei na USP, eu já queria fazer quadrinhos, mas não tinha faculdade de quadrinhos. Então pensei “O que vou fazer? Vou fazer Artes Plásticas”. Tem a ver, tem desenho (risos). Achei que eu iria aprender a pintar, esculpir, essas coisas todas que você não aprende, não é? Tinha muita aula teórica, que sempre achei interessante porque gosto de História. Mas a gente entra na faculdade e conhece outras pessoas, que vêm de lugares diferentes, que já fizeram outra faculdade, que gostam de quadrinhos, que faziam quadrinhos já na faculdade. E a USP tem essa magia. Eu me inscrevi em um monte de coisas, mil coisas novas que eu não estava esperando. 

Mas, durante esse tempo todo aqui na faculdade, eu fui entendendo que não era para fazer o que eu achava que era desenho. Era pra eu tentar descobrir o que eu queria, qual era meu trabalho, o que eu queria dizer, e aí tentar fazer isso. Então eu fui descobrindo. 

Agora, honestamente mesmo, acho que a melhor coisa que eu aprendi na ECA foi porque a ECA tinha 13 cursos, outras profissões. Então eu convivia com gente que não era só desenhista, artista. Da minha turma de Artes Plásticas, tenho um amigo hoje. Das outras profissões, tenho dezenas. E a maioria dos meus bons amigos, aqueles que vão à minha casa, ligam no meu aniversário, sabem os nomes dos meus filhos, são da ECA. Acho que uma das grandes coisas de estudar na USP é essa mistura de pessoas diferentes.

Muita gente que desenha tem essa frustração de imaginar muito mais do que consegue fazer. Em algum momento da sua carreira, você já pensou em desistir porque você não conseguia fazer o que imaginava?

Se pensei em desistir? Algumas vezes. Um ano antes de criar os 10 pãezinhos, ou dois anos antes. Por quê? Porque eu adorava fazer quadrinhos, eu fiz meus primeiros quadrinhos no colegial. Entrei na faculdade, conheci outras pessoas que gostavam de quadrinhos também e fizemos uma revista, cada um com sua história. Mas, de modo geral, eram histórias de super-heróis porque era o que a gente lia, era o que tinha na banca. 

Aí, nos anos 90, começaram a sair notícias dos primeiros brasileiros que foram desenhar super heróis nos Estados Unidos, por meio de uma agência aqui de São Paulo. E eles [a agência] fizeram um evento na Escola Panamericana de Arte, trouxeram vários artistas, em 1994. E a gente foi e aconteceu um workshop com desenhistas. No ano seguinte, em 95, eles fizeram um evento na FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP], que era também avaliação de portfólio, tentar olhar o seu trabalho e recrutar pessoas. E a gente [eu e meu irmão] fez uns testes de seleção. Eles dão um conceito genérico de cinco páginas e você tem que desenhar. E ficaram péssimas. Nessa época, a regra era assim: esse é o estilo de desenho que está na moda, você tem que desenhar assim. O que não é muito mentira no mundo comercial.  Mas uma coisa que esses roteiros de teste não tinham era história. São páginas sem história, só que pra ver se o desenhista sabe desenhar aquilo ali, cenas mais estáticas, cenas de ação, close, cenário. E, no fundo,o que eu gosto de fazer, o que o Fábio gosta de fazer é contar histórias. O desenho por desenho a gente não gosta. A gente não é desenhista, tem que ter uma história por trás. E aí as páginas ficaram ruins e a gente foi desanimando. 

Nessa época, a gente foi fazer outra coisa, um trampo na Bienal de São Paulo como monitor, dar aula de História da Arte, trabalhar na indústria de moda, enfim…. Ficamos um ano sem fazer quadrinhos porque tentamos ir por aí e não deu certo. Aí, na Bienal de São Paulo, a gente conheceu outras pessoas que eram um pouquinho mais velhas que a gente e conheciam uns quadrinhos que a gente nunca tinha ouvido falar. Então a gente viu que existiam outros tipos de quadrinhos, histórias de pessoas normais, problemas de relacionamento, de trabalho, da vida real, e que não eram só [histórias de] super-herói. Então isso deu uma nova cara. 

Era uma época em que, na faculdade e também na Bienal de Arte, a gente estava em contato com essa pergunta de “O que você quer dizer com seu trabalho?”. E, com o Homem-Aranha, eu não queria dizer nada. Então que tipo de história a gente queria fazer? Foi uma virada na nossa cabeça e a gente criou os 10 pãezinhos, uma fanzine para contar histórias cotidianas. Mas era isso. Um ano antes eu estava quase desistindo de fazer quadrinhos, queria ser fotógrafo, sei lá, fazer outra coisa que fosse mais palpável.

Histórias que fazem com que as pessoas se identifiquem, estabeleçam uma conexão, são as que te atraem mais. Como é o processo de construir o traço, os elementos gráficos, a partir de uma narrativa que te interessa? 

Cada história é diferente. Esse, na verdade, é o desafio. Quando você cria um personagem e conta mais histórias com o mesmo personagem, essa parte gráfica deixa de ser tanto um desafio e se torna mais uma repetição, mas isso também agiliza o processo. Quando você tem que inventar tudo sempre, as coisas demoram mais. Mas é um desafio que eu gosto. Então não é o desenho em si, é sempre a história. A história vai pedir alguma coisa aqui ou ali e, às vezes, vai ficar mais fácil. Quanto mais história tiver, mais fácil vai ser de criar os desenhos porque tem algo para juntar. É muito uma questão de Gestalt, digamos assim. Se fizer sentido, vai ser muito mais fácil de fazer e passar a mensagem do que um desenho vazio sem significado por trás. Então é por isso que as histórias normalmente vêm primeiro pra gente. 

Você e o Fábio Moon ganharam o Prêmio Eisner em 2008 e foram os primeiros brasileiros a conseguir esse feito. Qual o impacto dessa premiação para vocês e para a representatividade dos quadrinhos brasileiros no exterior desde então? 

Acho que é muito mais… não vou dizer fácil. Mas essa possibilidade de você ser um quadrinista brasileiro e ganhar um prêmio importante como o Eisner é real. Então a gente tornou realidade uma coisa que era só um sonho. E aí é mais fácil as pessoas mirarem ali. Então os caminhos de todos os outros brasileiros que ganharam o Eisner são bem diferentes. Cada um diferente do outro e todos diferentes do nosso. Mas deixa de ser essa coisa impossível. Só que antes é muito mais difícil acreditar naquilo. Até que alguém vai lá e faz. 

E, para encerrar, tem algum projeto que você está desenvolvendo agora e pode compartilhar com a gente?

Está vindo mais Umbrella. Isso é o que eu posso falar por enquanto. Então uma hora vai sair (risos).