“As universidades passam hoje por um processo de colapso contínuo”

Bruna Brelaz, presidente da UNE, analisa o atual cenário da educação brasileira e comenta temas como pandemia, eleições e políticas de cotas

Foto: Karla Boughoff/Arquivo Pessoal

por Victória Pacheco

Bruna Brelaz, de 26 anos, assumiu a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) em julho de 2021, tornando-se a primeira mulher negra a liderar a entidade. A estudante e ativista nasceu em Manaus e cursou Pedagogia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) antes de iniciar a graduação em Direito na Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo.

Em entrevista ao JC, Bruna falou sobre a atuação do movimento estudantil nos últimos anos e o legado deixado pelo governo Bolsonaro às universidades e escolas do Brasil. Ela também explicitou o posicionamento da entidade em relação a diferentes questões educacionais e políticas. 

Ao longo do governo Bolsonaro, observamos a participação da UNE em várias mobilizações, desde os protestos contra o bloqueio de verbas das universidades públicas e dos institutos federais, ainda em 2019, até o ato pela democracia do último onze de agosto. Em sua opinião, quais atuações recentes da entidade foram as mais relevantes?

Desde o início do governo Bolsonaro, a UNE cumpriu um papel de destaque. Ainda no primeiro bloqueio de verbas que o governo impôs a algumas universidades federais, estudantes do país todo se mobilizaram fortemente, organizando o chamado Tsunami da Educação em defesa dos recursos da universidade. Os estudantes protestavam também contra o tratamento que o governo indicava que daria à universidade nos próximos anos. Por exemplo, o governo dizia que na universidade só havia balbúrdia e que os estudantes eram “idiotas úteis”. Após esse marco, que, na minha opinião, foi um dos mais importantes movimentos que organizamos, surgiu a pandemia do coronavírus, limitando a mobilização de rua dos estudantes. Porém, mesmo com a crise sanitária, nós estivemos muito atuantes na internet, pressionando para que o governo enxergasse a educação como uma prioridade e conduzisse um plano emergencial para a recuperação dos alunos que haviam abandonado a sala de aula, seja na escola ou na universidade. Já na retomada — inclusive, forçada — das atividades presenciais, os estudantes, juntamente a diversos outros setores sociais, voltaram a se mobilizar, mesmo sabendo dos perigos da pandemia, para denunciar que o atual governo não estava comprometido com o povo brasileiro e para reivindicar políticas públicas como a vacina e as medidas emergenciais. Mais recentemente, no último onze de agosto, os estudantes, ao lado de outros setores da sociedade e da ciência, se levantaram para defender a importância da democracia e seu papel para o desenvolvimento social.

A pandemia ocasionou impactos inegáveis à educação brasileira, afetando de maneira desproporcional os estudantes de alta e de baixa renda. Quais ações a UNE considera necessárias para superar esses efeitos?

Primeiramente, é preciso considerar que os efeitos em questão poderiam ser revertidos ou ao menos diminuídos se o governo tivesse atuado para construir um plano emergencial de recuperação da educação. Infelizmente, isso não aconteceu. Hoje, percebemos as consequências da falta de preocupação do governo com a educação. O que há atualmente é uma situação grave: milhares de estudantes estão fora da sala de aula nas escolas, e na universidade não é diferente. As pessoas mais afetadas nesse contexto são os alunos mais pobres, muitos dos quais acessaram o ensino superior com o auxílio das políticas públicas voltadas para a popularização das universidades. Se a tendência de evasão estudantil não for revertida, perderemos uma geração de estudantes que poderiam contribuir para o futuro do país a partir da educação. Essa é uma das principais bandeiras que temos levantado. Esperamos que, nestas eleições, possamos debater a situação emergencial da educação brasileira. Aliado a isso, é importante lembrar dos cortes de verba que ocorreram em meio à crise educacional. As universidades – principalmente as federais – passam hoje por um processo de colapso contínuo. Todo mês, reitores e administradores não sabem como pagarão as contas das instituições, porque não existem recursos suficientes. Isso também contribui para o aprofundamento da crise educacional.

Se a tendência de evasão estudantil não for revertida, perderemos uma geração de estudantes que poderiam contribuir para o futuro do país

Ainda na temática da educação, a Lei de Cotas – que reserva vagas nas instituições federais de ensino superior para alunos de escola pública, negros, indígenas e pessoas de baixa renda – completou dez anos recentemente. Como a UNE avalia a implementação dessa lei, uma década após ela ser sancionada, e seus resultados?

Foi uma grande vitória termos conseguido dobrar o número de estudantes negros no ensino superior e aumentar o número de estudantes de baixa renda. Também estamos avançando em relação à questão dos estudantes indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência (PCDs) – vale lembrar que a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) passou a incluir as PCDs somente em 2016. Portanto, em nossa opinião, a política de cotas é um instrumento que, nos últimos dez anos, conseguiu emplacar aquilo que o Brasil deixou de lado por séculos. Por muito tempo, a universidade foi ocupada pelas classes dominantes. Ela foi criada, muito tardiamente, para suprir as necessidades das elites do país. Mas, hoje, a universidade é um instrumento que tem aberto portas para milhares de pessoas que sonham com o ingresso no ensino superior. Existe o fator da reparação histórica, que está ligado à dívida que temos com o povo negro, indígena e os mais pobres deste país. Por muito tempo, a produção de conhecimento no Brasil foi feita pelas elites, e poucas são as referências mais antigas que temos de intelectuais negros e indígenas. Atualmente, esses grupos passam a entrar na universidade e realizar a produção científica. Essa é uma reparação histórica que as cotas têm garantido. Por isso, as cotas precisam ser continuadas. Dentro da política de cotas, temos, também, o desafio de fortalecer o mecanismo da permanência estudantil: o estudante de baixa renda precisa permanecer no ensino superior com o auxílio de um subsídio estatal. Além disso, é preciso fortalecer as bancas de heteroidentificação. Infelizmente, hoje vemos muitas fraudes acontecendo no sistema de cotas, então essas bancas precisam ser revisionadas.

O estudante de baixa renda precisa permanecer no ensino superior com o auxílio de um subsídio estatal

A UNE já se aliou a entidades estudantis da USP, com destaque para o Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito, em contextos de manifestação políticas, como o ato “50 Anos do Golpe: Repressão Ontem e Hoje”, e o previamente mencionado ato pela democracia do último mês. Como você percebe a relação entre a UNE e a USP atualmente?

A primeira coisa que eu gostaria de dizer é que nós realizamos, com a ajuda do Celso Campilongo, diretor da Sanfran, a gravação do clipe das cotas, uma das produções que a UNE fez na USP. Essa integração foi muito simbólica, porque sinalizou que nós estávamos realmente ocupando a USP. Sabemos o histórico da USP, que, assim como diversas universidades brasileiras, nasceu elitizada e, agora, passa por um novo processo, no qual as camadas populares têm acessado a instituição. Na relação com o movimento estudantil, isso também reverbera. Por exemplo, o Centro Acadêmico XI de Agosto é, atualmente, presidido por uma mulher negra, que assume o centro acadêmico de um curso tão importante, o Direito. Esse cenário se tornou possível a partir da atuação do movimento estudantil mas, também, da luta histórica da UNE pela popularização da universidade. Para a minha geração, é muito bonito ver a gente ocupando esses espaços, seja para gravar um clipe, seja nas cadeiras de uma sala de aula.

No que diz respeito ao atual momento político do país, qual tem sido o papel da UNE na campanha eleitoral de 2022?

A UNE aprovou uma plataforma eleitoral, que visa pontuar os principais desafios da educação. O que nós queremos é que todos os candidatos possam se comprometer com essa plataforma, permitindo a geração de uma ponte de diálogos entre o movimento estudantil e o Estado. O que a UNE quer é desafiar os candidatos, tanto à presidência como aos cargos legislativos, a repensarem o modelo de educação vigente. Precisaremos traçar planos para recuperar o setor educacional e inseri-lo no debate do desenvolvimento nacional. Queremos que a universidade torne o Brasil mais forte e faça com que o povo brasileiro se emancipe socialmente e intelectualmente. Então esse é nosso desafio agora na eleição: dialogar com todos os candidatos, exceto, na nossa opinião, com o Bolsonaro. A UNE é notadamente contra o atual presidente da República, porque ele odeia os estudantes e a educação. Para nós, ele é o inimigo número um. Mas estamos dispostos a dialogar com os outros candidatos e apresentar a plataforma eleitoral que elaboramos. Esse vai ser o nosso papel. Obviamente, sempre estaremos em vigilância da democracia e das eleições livres. Não aceitamos nenhuma ameaça às eleições, porque elas são uma vitória da democracia brasileira. Isso também tem sido um ponto chave de nossa mobilização.

A UNE é notadamente contra o atual presidente da República, porque ele odeia os estudantes e a educação. Para nós, ele é o inimigo número um

E o que a UNE espera de um possível novo governo?

Nós esperamos que ele seja um governo democrático e que esteja aberto a ouvir as pautas dos estudantes. O que queremos desse novo governo, qualquer que seja, é que ele possa dialogar com a educação e respeitar as instituições democráticas, além de ter o compromisso de reconstruir as bases educacionais do país e recuperar os estudantes que têm desistido da escola e do ensino superior.

Bruna, você comentou, em 2021, sobre a necessidade de se formar uma frente ampla contra o Bolsonaro. Você acredita que esse objetivo foi atingido?

Eu, particularmente, enquanto Bruna, e não como presidente da UNE, vejo a atual candidatura do Lula como esse símbolo da frente ampla eleitoral. O que nós queríamos naquele período [em outubro de 2021] não tinha nada a ver com o debate eleitoral. Nós queríamos uma frente ampla de mobilização para tirar o Bolsonaro do poder. Não por um mero capricho, mas porque, na nossa opinião, o Bolsonaro deixou o Brasil em um estado de calamidade, de fome, de desemprego. Naquele momento, o Bolsonaro não tinha que continuar na presidência da república. Quando a CPI da Covid revelou que o governo estava cobrando propina por doses de vacina, aquilo foi visto por nós como um escândalo tremendo. Logo, a construção de uma frente ampla se mostrava essencial. Mas nós não conseguimos tirar o Bolsonaro do poder, porque ele tem nas mãos o Congresso Nacional, o que inviabilizou um processo de impeachment, pelo qual lutávamos naquele período. Hoje, eu enxergo essa frente ampla dentro do debate eleitoral. Em minha opinião pessoal, o Lula conseguiu reunir diversos setores a favor da democracia.

Para finalizar, que mudanças você tem observado no movimento estudantil ao longo de sua trajetória?

Os novos meios digitais têm modificado a forma como nos mobilizamos. Acredito que, hoje, a internet é uma grande aliada do movimento estudantil. Na minha trajetória na UNE (entrei para a presidência ainda na pandemia, quando havia mais restrições), percebi que a internet foi importante para que a gente conseguisse barrar alguns ataques à educação. Os estudantes estavam muito mobilizados nesse meio. Ainda que fisicamente distantes, eles estavam mais unidos, seja nas sessões virtuais do Congresso, seja no levantamento de hashtags. Portanto, a internet é um elemento relevante, que se associa à luta tradicional. Mas, na minha opinião, conversar com o estudante, estar presente no dia a dia, conhecendo a realidade daquela pessoa, é algo que não pode ser alterado, pois é a essência do movimento estudantil.