Próxima estação: a caminho da USP

As desventuras diárias no transporte público de uma estudante que mora longe da Universidade

por Julia Custódio

Foto: João Pedro Barreto/JC

Se você entrar em qualquer site de frases prontas ou de economia, provavelmente vai ler que o tempo é um recurso. No primeiro site, as frases dirão que ele é escasso e por isso é necessário aproveitar o agora; no segundo, dirão que é necessário saber gerenciar esse recurso escasso. Para ela, a combinação das palavras “tempo” e “escasso” nunca fez tanto sentido como faz agora.

É por isso que sempre leva um livro na mochila, mesmo que não vá ler. Por causa do tempo que gasta todos os dias, mais especificamente do tempo que gasta nas viagens de ida e volta à USP. No primeiro semestre — enquanto ainda tinha ânimo —, leu romances de época, livros-reportagem e suspenses. A janelinha do ônibus era sua melhor companheira nas aventuras literárias. A visão de uma jovem encostada com a cabeça no vidro, um livro na mão, fones de ouvido tocando suas músicas favoritas, era romântica na cabeça dela. Hoje, esse cenário a trai.

Bateu com força a cabeça na janela quando o ônibus passou por uma lombada. Alguém que estava em pé reclamou “Vai com calma, motô!” e os outros — todos espremidos como se fossem sardinhas em uma lata — concordaram com murmúrios. Todo dia era a mesma coisa. Bom, apesar da cabeça e pescoços doloridos pela soneca, pelo menos hoje ela estava sentada.

Por causa do tranco, o livro que estava no colo caiu no chão. Era o mesmo livro que estava tentando ler há uma semana, nas idas e voltas da faculdade, mas sempre lia uma ou duas páginas antes de cair no sono. Não era chato, ao contrário, mas nenhuma literatura consegue ganhar do cansaço que sente. Marcou a página em que parou, guardou o livro, abraçou a mochila e aumentou o volume da música.

Ninguém presta atenção, mas o transporte público é um dos lugares em que os sentidos são super estimulados. Um dia o Gabriel comentou isso enquanto atravessavam a Praça do Relógio, e só assim ela se atentou. Mesmo com a música alta nos fones, ainda conseguia ouvir os barulhos que os carros faziam ao passar zunindo pela rodovia, o cobrador pedindo aos passageiros que dessem “um passinho para dentro, por gentileza, tem mais gente querendo entrar”. Mas não só os sons, também o cheiro de perfume da moça ao lado, o da fumaça que saia do escape dos motores; a sensação de calor pelos corpos todos juntos, sentir a coxa de um desconhecido tocando na sua quando está sentado ao seu lado; não ter para onde olhar além daquele tanto de gente e tentar evitar encontrar os olhares de todos.

Depois de um tempo, tudo isso fica tão comum que é fácil ignorar até os detalhes mais desconfortáveis. Se não ignorasse, iria à loucura. Diariamente eram quase duas horas para chegar à USP — se tivesse chuva ou um acidente, bem mais —, depois de madrugar e ver o sol nascendo pela janela da condução. Primeiro pegava o ônibus intermunicipal, depois a linha amarela do metrô e, por fim, o ônibus circular.

Nada de diferente acontecia, exceto quando acontecia e, então, era o que tinha para puxar assunto com os amigos. Não é culpa dela, quando se passa tanto tempo frequentando um lugar, você acaba presenciando coisas que gostaria de contar às pessoas. A diferença é que no transporte público essas coisas não são tão empolgantes assim.

Houve a vez que um homem, claramente drogado, entrou no ônibus e ficou lambendo a própria mão. Em outra, uma mulher bateu boca com o cobrador. Esses dias, um ônibus da prefeitura passou a toda velocidade e arrancou o retrovisor da condução. Ela deve ter contado essas histórias para a Rebeca e mais de uma vez para o Diogo, mas eles são legais demais para responder que esses casos não são grande coisa e a deixam falar todas as vezes.

Quando o ônibus chegou no terminal, ela nem precisava se esforçar para descer os degraus, era só levantar do banco e esperar que a enxurrada de passageiros a empurasse para fora da condução. Alguns metros e uma nova passagem depois, agora tinha que pegar o metrô. Duas estações até o Butantã. 

Essa era a parte mais tranquila do trajeto, a única que não era lotada, a mais quieta e a menos quente. Ela sabia exatamente a porta que tinha que entrar para que quando chegasse no Butantã saísse na frente da escada rolante que subia. Com o tempo aprendeu palavra por palavra dos anúncios do metrô e repetia mentalmente junto com a locutora: “Olá, passageiro. O aviso sonoro de fechamento das portas existe para te dar segurança. Não entre e nem saia do trem após ouvir o sinal. Obrigada”.

Como essas janelas não tinham tanta graça, ela gostava de olhar para as pessoas ao seu redor e imaginar em que estação iriam descer. Aquele menino, de blusa moleton azul escuro, calça jeans preta e cabelo cacheado, desceria na Paulista e depois iria para a Consolação. Quer dizer, ela nunca saberia se estava certa, já que nunca ficava tempo o suficiente no metrô para descobrir — ainda bem.

Ainda bem porque o tempo que passava na linha amarela era o mais solitário. Na verdade, todo o trajeto era, alguns dias mais e outros menos. No começo disfarçava a solidão com música e leitura, e depois com uma soneca, mas era muito tempo sozinha com os próprios pensamentos, sem ninguém para compartilhar, rir, escutar. Dentro do metrô, onde a imaginação não tinha muito espaço para correr, as preocupações eram tão altas que pareciam um paredão de caixas de som. Às vezes ela se deixava levar e tinha medo que algum dia simplesmente perdesse a estação onde tinha que descer. 

O som de um saxofone. “Próxima estação (next station): Butantã”. Repetiu todas as palavras mentalmente.

Terceira etapa: ônibus circular. Poderia pegar qualquer um dos três que vão para a cidade universitária, geralmente ela só vê qual fila está menor e entra. De vez em quando encontra algum colega no terminal e vão conversando no caminho até a aula, mas hoje não viu ninguém.

Atrasada, claro. Isso não é nenhuma novidade. Na primeira semana de aula chegou antes do horário todos os dias; na segunda, chegou em cima de hora; nas outras, depende da sorte. 

Ela não se orgulha disso, mas fazer o que? Acordar mais cedo do que já acorda não é uma opção. Só conseguiria dormir o suficiente se fosse se deitar mais cedo, só se deitaria mais cedo se conseguisse adiantar os estudos e afazeres, só adiantaria os estudos e afazeres se chegasse mais rápido em casa, e só chegaria mais rápido… bom, já deu para entender onde isso vai chegar.

Por isso, aceita o atraso e torce para que não esteja perdendo algo importante enquanto encara as paisagens da USP passando pela janela. Portão 1… Faculdade de Educação…CRUSP… próximo ponto e depois outro. 

A cabeça não está ali. Talvez, se se concentrar o suficiente no caminho de volta para casa, consiga ler um ou dois capítulos do livro na mochila. O tempo ainda é um recurso escasso.