Qual é a cara da universidade? – 10 anos de cotas

Após a implementação da Lei de Cotas é possível ver uma mudança no perfil estudantil das universidades

por Isabella Oliveira, Larissa Leal e Rosiane Lopes

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Imagem: Marcos Santos/USP Imagens

A Lei de Cotas completou dez anos em agosto  A Lei n°12.711/2012, estabelece que 50% das vagas de universidades e instituições federais devem ser reservadas a alunos que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas. Destes 50%, metade é destinada a estudantes com renda familiar igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita. As vagas ainda devem ser preenchidas por pretos, pardos, indígenas (PPI) e pessoas com deficiência.

Conforme o Censo da Educação Superior 2011, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e pelo Ministério da Educação (MEC), cerca de 19,8% de pessoas pretas e pardas, com idade entre 18 e 24 anos, frequentavam ou haviam concluído o ensino superior em 2011. Segundo pesquisa realizada pelo site Quero Bolsa, com base nos dados do Censo de 2019, entre 2010 e 2019, com a implementação da política de cotas, o número de negros nas universidades cresceu quase 400%. Os estudantes chegaram a representar 38,15% do total de matriculados. 

A criação do sistema de cotas está ligada à necessidade de reparação histórica. O Brasil é marcado por mais de 300 anos de escravidão, mas mesmo com o fim do regime escravocrata, a população negra não foi contemplada com políticas que assegurassem sua inclusão na sociedade. Os negros foram marginalizados e as desigualdades estruturadas. Nesse cenário, as cotas, que são ações afirmativas, visam corrigir as disparidades sociais, econômicas e educacionais que colocam grupos vulneráveis distantes de seus direitos, como no acesso à educação superior. 

Além de possibilitar que grupos socialmente vulneráveis quebrem a barreira de espaços excludentes, a ação afirmativa é importante para a democratização do acesso ao ensino superior. “A Lei de Cotas é uma das leis mais exitosas na história do Brasil, em termos de inclusão social e racial. É uma lei que deu certo, incluiu muitas pessoas pobres”, explica Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Cotas na USP

“A USP está só começando, a gente já identifica uma maior participação de estudantes de escola pública e, dentro dos estudantes de escola pública, um crescimento da população preta e parda”, indica a professora. Em 2017, a instituição aderiu ao sistema de cotas no Sisu e na Fuvest. Como resultado, entre 2010 e 2019, o número de estudantes da graduação autodeclarados pretos, pardos ou indígenas quadruplicou

Já em 2021, a universidade contou com 50% de alunos oriundos de escolas públicas. Segundo o Jornal da USP, a instituição “registrou o índice de 51,7% de alunos matriculados oriundos de escolas públicas em seus cursos de graduação e, dentre eles, 44,1% autodeclarados pretos, pardos e indígenas”.

Jéssica Marcolino é formanda de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo e conta: “eu vejo a política de cotas como uma ferramenta transformadora da história racial no Brasil”. A estudante ingressou na USP no primeiro ano de adesão da universidade às cotas. Antes disso, ela já cursava arquitetura e urbanismo em outra instituição e, mesmo satisfeita com o ensino, sabia que a universidade pública tinha muito mais a oferecer a jovens de baixa renda como ela, através de programas de apoio à permanência. 

Contudo, a adoção de cotas raciais e socioeconômicas não resolve integralmente o problema, tendo em vista as dificuldades que muitos encontram para dar continuidade aos estudos após a aprovação. Por isso, são necessárias melhorias nas políticas que asseguram a permanência desses estudantes. Jéssica destaca a situação dos formandos que após concluírem todas as atividades do curso tem sua matrícula encerrada e, portanto, não podem mais usufruir dos serviços da universidade. “É muito degradante um dia você ser aluno e no outro não ser mais, sem nenhum acompanhamento de um assistente social para ajudar a conduzir esse outro processo de transição de forma gradual e menos abrupta”.

E as fraudes?

Entre 2017 e 2021, foram realizadas 381 denúncias de supostas fraudes ao sistema de cotas da universidade. Do total,160 foram descartadas e 27 não tiveram andamento, pois os próprios estudantes cancelaram a matrícula. Até o ano passado, 193 ainda estavam sendo investigadas pela Pró-Reitoria de Graduação, das quais 161 eram referentes ao ingresso via Sisu e 32 por meio do vestibular da Fuvest, todas por burlar a autodeclaração de pertencimento ao grupo PPI.

Em 2020, após denúncia do Coletivo Lélia Gonzalez de Negras e Negros, do Instituto de Relações Internacionais, a USP expulsou pela primeira vez um estudante por fraudar o sistema de cotas, visto que o aluno não conseguiu comprovar sua autodeclaração. Em julho de 2021, a universidade expulsou outros seis estudantes pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, os envolvidos ainda poderiam entrar com um pedido de reconsideração da decisão.

A banca de heteroidentificação surge com o objetivo de erradicar as fraudes de vagas reservadas para estudantes autodeclarados como PPI por meio de análises mais minuciosas dos vestibulandos aprovados que se utilizaram das cotas e buscará entender se eles se encaixam nos recortes étnico-raciais que essas políticas abraçam.

A banca começa a atuar a partir deste ano e vai analisar ingressos tanto pela Fuvest quanto pelo Sisu. Ela será composta por um docente, um servidor técnico-administrativo, um aluno da graduação, um aluno da pós-graduação e um representante da sociedade civil. Os processos entre Sisu e Fuvest se diferem um pouco: alunos que ingressarem pela Fuvest passarão por duas bancas que farão a análise por fotos. Caso não seja possível a confirmação, será necessário o comparecimento presencial para a análise. Já para o Sisu, a primeira análise  se dá por vídeo chamada e se não for possível a confirmação, o estudante precisa comparecer presencialmente no campus.

A iniciativa da implementação da banca vem junto com a criação da PRIP – Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento. Criada em maio de 2022, a nova pró-reitoria se divide em cinco segmentos: vida no campus; gênero, relações étnico-raciais e diversidades; saúde mental e bem-estar social; direitos humanos e políticas de reparação, memória e justiça e formação e vida profissional.

Agora, a PRIP tem por função, entre outras demandas, fiscalizar as denúncias de supostas fraudes e também acompanhar os discentes durante e após a graduação.