40 anos das creches: o espaço das crianças da comunidade USP

O serviço de creches, idealizado há 40 anos, atende crianças de 4 meses até 6 anos dependentes de servidores e estudantes

por Carolina Borin Garcia

Foto: Ana Júlia Maciel/JC

No ano de 2022, o Programa de Creches da USP completa 40 anos. Após um longo processo para implementação, vive-se um contexto contínuo de luta por melhorias e por garantia de uma educação de qualidade para as crianças da comunidade desde a pré-escola.

Atualmente, as creches têm quatro unidades: Creche Central localizada na Cidade Universitária, Butantã; Creche da Saúde, na Faculdade de Medicina da USP;  Creche São Carlos, localizado neste campus da USP na cidade; e Creche Carochinha, no campus de Ribeirão Preto. 

Ingresso nas creches

O serviço atende exclusivamente às crianças dependentes de servidores e estudantes da Universidade. O ingresso dessas crianças é feito por meio de inscrição via formulário e seguindo normas do edital do ano vigente, ambos divulgados pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento – Vida no Campus (Prip) atualmente. Até 2021, a inscrição e o ingresso eram mediados pelo SAS, Secretária de Assistência Social da Universidade, que foi incorporada à Prip neste ano. 

Existem critérios de seleção de natureza socioeconômica, que são definidos pela assistência social e que estão previstos nos editais, assim como o número de vagas existentes em cada unidade das creches.  Esse número é determinado pelo número de crianças já matriculadas no ano letivo vigente, o número de profissionais no quadro de cada umas Creches/Pré-Escolas e a proporcionalidade das categorias de vínculos com a Universidade (estudantes, docentes e funcionários) já atendidas, visto que cada setor da comunidade USP tem um porcentagem de vagas destinadas.

Para acessar esse serviço, não há cobrança de taxas, visto que as creches eram mantidas por verbas da própria Reitoria destinadas ao antigo SAS, o COSEAS (Coordenadoria de Saúde e Assistência Social). O último edital, que previa o ingresso de crianças no ano de 2023, teve as inscrições finalizadas no dia 03 de outubro.

Histórico

O movimento pela construção de uma creche-berçário se deu pela primeira vez ainda em 1965. Na ocasião, a Associação dos Funcionários da Reitoria da Universidade de São Paulo (AFRUSP) recebeu uma solicitação oficial das servidoras. Sob o argumento de falta de recursos para realização das obras necessárias, a solicitação não foi atendida.

Mesmo após uma resolução da Reitoria para a construção em 73, o processo de articulação e criação dos espaços da creche estava extremamente lento. Dessa forma, organizou-se a “Passeata dos Bebês”, em 1975. Nessa mobilização, funcionários, professores e estudantes, junto aos seus filhos, reivindicaram a construção das creches. Como resultado, a Reitoria entrou em contato com o COSEAS para a elaboração de um estudo preparatório para o projeto das creches. 

Esses movimentos aconteciam em um contexto no qual entendia-se que “entrar na creche era um direito da mãe trabalhadora e muitas vezes as pessoas tinham até dúvida se estar na creche era algo saudável para as crianças porque o cuidado da creche é diferente do cuidado materno”. A fala é de Janeide Silva, que é pedagoga e, atualmente, assistente de direção da Creche Central, onde atua há 22 anos.  A pedagoga complementa: “[Com a criação das creches] a gente deu um passo adiante nas discussões sobre educação infantil, visto que para nós, desde o início, a criança também deve ter acesso a educação de qualidade.”

Após interrupções das construções por questões financeiras, o espaço da primeira creche ― que viria a ser hoje a Creche Central ― é finalmente concluído em 1981. “Como uma marca especial, [a Creche Central] trazia como marca do seu protagonismo a proposta do serviço de creche da universidade pautado em atender gratuitamente os filhos, os dependentes da comunidade USP”, ressalta Janeide. 

Luta, Creche Oeste e dificuldades

O histórico de luta, que se fez presente desde a implementação das creches, permaneceu ao longo dos anos. 

Na década de 90, as professoras eram chamadas de “recreacionistas”, já que a função exigia apenas o 2º grau completo. Posteriormente com a mudança do Plano de Carreira e Funções da universidade, essas profissionais passaram a ser compreendidas enquanto técnicas. Após 20 anos de luta por reconhecimento desses profissionais enquanto “professores” de fato, com auxílio da professora Lisete Arelaro, então diretora da Escola de Aplicação, foi produzida uma minuta de Lei para que a função fosse adicionada ao quadro de nível superior do Plano de Carreira.

Isso de fato ocorreu em 2013, mas para as profissionais das creches a luta continuou: mesmo aprovada na Assembleia Legislativa, a USP demora algum tempo para implementação dessa mudança, que ocorre inicialmente apenas na Escola de Aplicação. Com mobilizações constantes dos grupos de funcionários, docentes, membros da comunidade externa e interna da Universidade, essa mudança de nomenclatura é conquistada e implementada integralmente para as professoras das creches só em 2020.

Ainda em 2014, a Universidade suspendeu a abertura de vagas para novas matrículas nas creches da USP. Nesse cenário, Janeide conta o processo de articulação das creches: “Eu me lembro que a gente participou de um congresso lá em São Carlos, com todas as creches e montamos uma sala onde colocamos a creche em números para pensar a quantidade de vagas e ver que estávamos deixando de atender tantas crianças”. As mobilizações foram para além das creches e envolveram um significativo número de pessoas, inclusive em instâncias judiciais para garantir que vagas fossem disponibilizadas.

No ano seguinte, a USP implementou um Plano de Incentivo à Demissão Voluntária para os funcionários. Com isso, o Programa de Creches que já atendia metade da sua capacidade inicial de crianças, passou a sofrer com outra dificuldade: a falta de funcionários seja na Divisão de Creches seja nas diferentes unidades, o que colocou em xeque a manutenção do próprio programa. Diante disso, a comunidade manifestou-se em prol da abertura de novas vagas e algumas das famílias entraram com processos judiciais, o que fez com que um número pequeno de crianças conseguisse garantir vagas nas creches em 2016.

Registros da Ocupação Creche Oeste durante o ano de 2017 em que a Reitoria encerrou as atividades da unidade. Foto: Arquivo Pessoal/ Facebook – Ocupação Creche Aberta

“Em finais do ano de 2016, já se ouviu falar que a creche oeste não estava sendo capaz de se manter e, assim que entrou Janeiro de 2017, houve o corte de verbas e uma ordem para que a creche fosse fechada”, conta Ananta, graduanda de filosofia pela USP. A Reitoria alegou falta de recursos para manter o espaço da Creche Oeste. “Houve movimentação da parte de professores, funcionários, pais dos alunos que se manifestaram contra e que tinham consciência de que a creche é um patrimônio público da Universidade, portanto se houvesse problemas econômicos o fechamento jamais seria a solução.” 

Porém, a Creche Oeste de fato foi fechada. As crianças, professores e funcionários foram realocados para a Creche Central da Universidade.

A antiga Creche Oeste fica localizada no campus do Butantã, entre o Instituto de Física e a Prefeitura do Campus. Foto: Reprodução/Google Imagens

A partir dessa articulação, o local em que a Creche Oeste funcionava foi ocupado, dando início àquilo que ficou conhecido como OCA ― Ocupação Creche Aberta. Nesse espaço e por meio de diferentes setores da comunidade, foram organizadas inúmeras atividades, almoços beneficentes, seminários, vídeo-cartas abertas que tinham o intuito de garantir a manutenção da ocupação e debater a condição do Programa de Creches e, sobretudo, o fechamento abrupto de uma de suas unidades. 

Nesse cenário, a Associação de Pais e Funcionários da Creche Central (APEF) teve um papel fundamental na visão de Janeide e também de Ananta. “É uma instituição que tem um trabalho importante de conversar com outras unidades, conversa junto à reitoria, aos setores para dizer da importância que tem esse trabalho e defender junto com a creche uma educação infantil de qualidade”, comenta Janeide. “Estamos resistindo como a ocupação que mais tempo existe no campus: 5 anos”, diz Ananta.

Algumas questões permanecem e outras novas dificuldades surgem no presente. “A creche tem capacidade para duzentas e cinquenta crianças, mas a gente não tem uma equipe de funcionários, de professoras para atender duzentas e cinquenta crianças e, aliás, também em função desse desmonte da universidade”. Atualmente, a USP tem enfrentado um avanço das terceirizações, como pode ser observado nos bandejões. Essa dinâmica impacta inclusive as creches, visto que parte da alimentação das crianças é oriunda da produção feita nos bandejões.

Atualmente, parte das refeições das creches provém do bandejão. Contudo, parte do preparo, sobretudo da alimentação dos bebês é feito diretamente nas creches com acompanhamento de uma equipe de nutricionistas. Foto: Ana Júlia Maciel/JC

Além disso, a terceirização também se faz presente entre os funcionários das creches, por exemplo. “Todos os trabalhadores que atuam dentro da instituição de educação infantil são parceiros da construção do processo formativo das crianças que lá estão”, comenta Janeide. “Quando você interfere no setor de limpeza das empresas terceirizadas, em que há um rodízio muito grande, de tempos em tempos tem uma nova equipe ali, o trabalho com as crianças fica bastante fragilizado no sentido da mudança da inteireza de todos os adultos que estão no espaço.”

Para tentar minimizar algumas das dificuldades que permanecem no presente, como a questão das vagas e o corpo deficitário de funcionários, o edital teve algumas alterações desde 2014. “O que a gente conseguiu colocar dentro do edital foram algumas cláusulas dizendo que a quantidade de de crianças que tem disponibilidade de vagas também atende a um número para poder fornecer o serviço”, diz a pedagoga Janeide Silva. 

Espaço pensado e construído

Os espaços das creches são divididos em módulos de acordo com a faixa etária das crianças e toda estrutura de cada um dos espaços busca respeitar o desenvolvimento de cada uma das etapas da primeira infância. No caso da Creche Central, existem três módulos: Amarelo (destinado a crianças de 0 a 2 anos), Verde (destinado às crianças de 2 a 4 anos) e Azul (destinado às crianças de 4 anos a 5 anos e 11 meses). 

A estrutura predial assemelha-se a uma pétala de flor, como diz Janeide, em que cada um dos módulos saem de um ponto comum e se interligam com outros espaços da creche como salões de atividade cobertos de cada um dos módulos, salas de subgrupos dos módulos, hortas, biblioteca, área livre, parque, pomar e uma outra área aberta onde são realizadas as festas da creche. Nos espaços abertos, na unidade da creche do campus do Butantã, tem uma significativa presença de vegetação e alguma área verde, também mantida pela própria creche sob uma perspectiva de constituição de um sistema de agrofloresta, algo também trabalhado pedagogicamente com as crianças.

Nas creches, existem espaços externos e internos que as crianças podem acessar, com brinquedos adequados às suas idades e móveis que prezam pela acessibilidade e autonomia. Foto: Ana Júlia Maciel/JC

Em todos esses ambientes, os móveis, os brinquedos e o espaço na sua totalidade é pensado para as crianças. Nesse sentido, elas podem acessar e ter um tipo de autonomia respectivo à sua idade. Além disso, os temas e a disposição dos elementos dialogam com o projeto pedagógico desenvolvido pelo módulo, isto é, pelas crianças de determinada faixa etária e, também, por cada um dos subgrupos desses módulos pelo qual uma determinada professora é responsável.

A presença dos trabalhos desenvolvidos, desenhos, projetos das próprias crianças individualmente e coletivamente são recorrentes nas paredes e em espaços variados da Creche Central. Como conta Janeide, o objetivo é de fato mostrar e possibilitar o contato das crianças com aquilo que elas mesmas e seus colegas desenvolvem. O espaço faz-se assim acessível, mas também resultado de uma construção coletiva de um grupo de crianças, funcionários e docentes de um determinado tempo.

Os 40 anos

Em 22 de julho deste ano, foi feito no intuito de celebrar os anos de existência do programa e contou com a participação de docentes, funcionários e servidores que fazem parte das diferentes creches universitárias. Com a mediação de Prislaine dos Santos, atuante no programa de creches de 2008 até 2017, o evento contou com a presença de figuras que participaram da implementação das creches dos campi como Tuta Magaldi. 

O evento realizado online, está disponível aqui. Janeide Silva afirma que esse foi apenas um dos eventos que farão parte dessa homenagem, que possivelmente se estenderá até 2023. 

Porém, os 40 anos desses espaços, muitas vezes inclusive desconhecidos fisicamente e pela sua memória por parte daqueles que integram a Comunidade USP, vai muito além das homenagens. Apesar de todas as dificuldades e movimentos de resistência ao longo dos anos, o Programa de Creches da USP ainda é uma referência. “A gente produz muito conhecimento sobre educação infantil. Não é à toa que vem pessoas de diversos locais se inspirarem nas nossas práticas para aperfeiçoar as suas”, salienta a pedagoga Janeide. 

Os azulejos colocados nas paredes do espaço em que são realizadas as festas da Creche Central foram produzidos por alunos de cada turma, ao finalizarem o seu ciclo na creche. Com o passar do tempo, essa tradição foi substituída pela plantação de árvores no espaço do pomar da Creche Central. Foto: Ana Júlia Maciel/JC

A fala da assistente de direção é ilustrada pelo reconhecimento que a mesma teve quando ganhou o Prêmio Arte na Escola Cidadã pelo desenvolvimento de um projeto que buscava retomar as brincadeiras e o contexto do fechamento de um ciclo de uma turma da creche. Ananta complementa essa ideia: “Nos 40 anos de existência delas [das Creches USP], já foram e ainda são tidas como escolas modelos, nas quais as pesquisas educacionais são sempre testadas e amplamente utilizadas, uma vez que é validada com enormes resultados positivos.”

Em um cenário político social brasileiro em que a coletividade é colocada em xeque, a história das creches simboliza uma possibilidade de organização e luta, apesar das adversidades. “Se eu pudesse resumir esses 40 anos acho que a história para a fundação e construção do projeto dessas creches nasce com luta, com a luta das mulheres por creches, nasce com luta dos funcionários pela defesa de uma educação de qualidade mesmo quando direito a creche naquele momento era um direito das mães e não das crianças”, afirma Janeide. “É uma luta que a gente construiu há muitas mãos.”