Como criar outra indústria da moda?

Pesquisadores da USP pensam em alternativas para o atual modelo poluente e explorador de produção de roupas

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por Rebeca Fonseca

Arte: Rebeca Fonseca / Fotos: Freepik, Wikimedia Commons e Sustexmoda

Tecidos de todos os tipos e tamanhos são usados nos bairros Brás, Bom Retiro e Vila Maria para confecção de roupas. Os resíduos têxteis dessa produção formam montanhas coloridas dentro de sacos de lixo, que têm como destino aterros sanitários ou lixões. Segundo o relatório Fios da Moda, do Instituto Modefica e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), aproximadamente, 63 toneladas de restos como esses são geradas por dia na região.

As sobras de tecido não são lixo, mas sim matéria-prima de alto valor agregado e que pode ser aproveitado, na visão de Francisca Mendes, coordenadora do Núcleo de Apoio à Pesquisa Sustentabilidade Têxtil e Moda (NAP Sustexmoda) da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each-USP). O grupo de pesquisa estuda os impactos da cadeia têxtil e da indústria da moda na economia, na sociedade e no meio-ambiente e desenvolve projetos com o uso de resíduos têxteis para produção de novas peças.

Francisca conta que, entre os pesquisadores do grupo, há a preocupação de se entender o atual modelo de produção de roupas e elaborar soluções para os problemas sociais e socioambientais provenientes dele. 

Arte: Rebeca Fonseca

Produzir, consumir, descartar, produzir…

A frenesi consumista criada pela indústria da moda dita o padrão das relações de compra e faz da velocidade a tônica do modo de produção contemporâneo. Um ciclo de consumo e descarte extremamente veloz nasce junto com a imposição da rapidez. O atual sistema de produção pautado na aceleração é chamado de fast fashion, utilizado para inundar o mercado com peças de roupa baratas.

Para Francisca, o que é produzido pela técnica do fast fashion tem um preço acessível para a população, porém injusto. O uso de mão de obra superexplorada, que se beneficia da pobreza e não respeita o valor do processo produtivo, o uso de matérias-primas de baixa qualidade e a diminuição de etapas na confecção garantem um custo e, consequentemente, um preço reduzidos.

Joana Contino, doutora em Design pela PUC-Rio e pesquisadora das relações entre fast fashion e neoliberalismo, diz que o preço baixo e o grande volume das peças de fast fashion no mercado, assim como o acesso facilitado das pessoas à elas não são formas de democratização da moda. “Há o barateamento dos preços, mas não é uma democratização de verdade, são produtos de superexploração. A democratização não pode ser feita só na ponta do consumo, precisa envolver toda a cadeia produtiva”.

A pesquisadora acredita que o fenômeno do fast fashion é uma consequência do sistema capitalista e sua necessidade de constante expansão. O consumo acelerado é uma necessidade da indústria e não um desejo genuíno do consumidor, o que acontece é que com o aumento da produtividade, há a necessidade de se criar essa vontade de compra.

Além do preço baixo, a vontade é fabricada pelo marketing e pelo lançamento contínuo de novas coleções. Francisca detalha que a maior parte do custo de produção está na lógica de distribuição e no investimento em propaganda. “[O fast fashion] tira da consciência se você realmente precisa daquela peça, se aquela peça faz falta para você ou se não é só um estímulo de desejo”, diz.

A obsolescência programada também garante que o ciclo de consumo não cesse. Essa estratégia torna rapidamente obsoletas as peças de roupa: esteticamente, com a constante oferta de novas, e materialmente, pois o ciclo de vida delas é curto.

As consequências do exagero de produção, consumo e descarte recaem sobre o meio ambiente. A indústria da moda é a segunda mais poluente do mundo: segundo o relatório Fashion on Climate, da ONG Global Fashion Agenda com a empresa McKinsey and Company, em 2018, 4% das emissões globais de gases de efeito estufa foram emitidas pela indústria da moda. Além disso, 93 bilhões de metros cúbicos de água são gastos por ano e a produção têxtil é responsável por grande parte da poluição global de água industrial, de acordo com a Fundação Ellen MacArthur.

De acordo com o relatório Fios da Moda, no Brasil, em 2018, foram produzidas cerca de 9 bilhões de peças de roupa, o que totaliza mais de 40 peças por habitante. No contexto brasileiro, os dados sobre resíduos têxteis são preocupantes. Um relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) de 2022 revelou que o Brasil descarta 4 milhões de toneladas dessas sobras da produção por ano. Em 2014, o Sebrae mostrou que somente 20% delas são recicladas, enquanto o restante vai parar em lixões e aterros sanitários.

Arte: Rebeca Fonseca

Outros modos de produzir

Formas de produção desaceleradas e tentativas de compatibilizar o sistema de moda com a sustentabilidade são pensadas para que os danos ao meio ambiente e às relações de trabalho sejam minimizados. Dentro do grupo de pesquisa, Sustexmoda, Francisca conta que estão sendo desenvolvidos projetos socioambientais com foco na diminuição do desperdício têxtil. 

As sobras de tecido que seriam descartadas são reutilizadas e se transformam em matéria-prima para novas roupas e peças com outras finalidades. Grupos em vulnerabilidade social, como a comunidade LGBTQIA+ e pessoas em situação de rua, recebem capacitação e integram os projetos. Então, além da sustentabilidade, há a preocupação em auxiliar os participantes na geração de trabalho e renda, diz Francisca.

No projeto Fashion Upcycling Industrial, roupas que foram descartadas e rejeitos da indústria são utilizados para criação em pequena escala de novas peças. O upcycling é uma técnica semelhante à reciclagem. As mesmas atividades acontecem no Botão de Flor, que atende especificamente mulheres trans e travestis e visa a sua inserção social.

Oficina de confecção do Projeto Fashion Upcycling Industrial. Foto: Sustexmoda
Roupas feitas com a técnica do upcycling. Foto: Sustexmoda
Espaço de confecção das peças do projeto Botão de Flor. Foto: Sustexmoda

A produção de artesanatos a partir das sobras têxteis acontece no projeto Girassol, que é feito exclusivamente com pessoas adultas e da terceira idade na região da Lapa, em São Paulo. No Ubuntu, os participantes são ensinados a confeccionar tapetes em encontros semanais com uma arteterapeuta, que promove rodas de conversa entre as pessoas em situação de vulnerabilidade. Segundo Francisca, essa forma de trabalho com os resíduos é limitada pela matéria-prima e é mais complexa do que a confecção com tecidos novos, então a produção em escala industrial não seria rápida.

Artesanatos produzidos com resíduos no Projeto Girassol. Foto: Sustexmoda
O participante José Laurentino e os tapetes artesanais que criou. Foto: Sustexmoda

O uso de outros produtos têxteis também pode ser adotado como forma de tornar a produção mais sustentável. A fibra mais utilizada na indústria têxtil brasileira é o algodão, que é danoso ao meio ambiente pela grande quantidade de agrotóxicos e água utilizados em seu cultivo, de acordo com o levantamento Fios da Moda. Uma alternativa para substituí-lo seria o algodão agroecológico, pois a cultura é feita sem fertilizantes sintéticos e produtos químicos tóxicos.

Os projetos da Sustexmoda tentam amenizar as consequências do fast fashion sem substituí-lo. Uma forma desacelerada de produção, desde o início da cadeia produtiva, que se popularizou é chamada de slow fashion. Nesse modelo a mão de obra é valorizada e paga adequadamente, os tecidos utilizados são menos danosos ao meio ambiente e têm maior durabilidade e as peças são produzidas em menor escala. 

O que dificulta a popularização do slow fashion é o preço final para o consumidor, que é maior que o das roupas produzidas no fast fashion em função do próprio processo produtivo lento. Francisca defende que, apesar de o preço não ser condizente com o poder aquisitivo da população brasileira, ele é justo, sendo que o preço incorreto é o das roupas produzidas de forma acelerada, garantido principalmente pela exploração da mão de obra. 

“Utopia necessária”

A pesquisadora Joana Contino acredita que uma solução coletiva deve ser pensada, porque o consumidor que deseja fazer parte do ciclo da moda não é o culpado. “O slow fashion se torna um nicho, não podemos consumir de qualquer jeito, mas a mudança individual do consumidor não vai transformar [o modelo produtivo] porque o problema é estrutural”, defende. 

Soluções imediatas, como a criação de políticas públicas de valorização do trabalho e de incentivo ao algodão agroecológico podem ajudar, mas ela defende que o sistema econômico atual seja repensado. “A moda além do capitalismo é possível, as pessoas ainda buscariam nas roupas uma forma de expressar sua personalidade e identidade, seria uma moda menos influenciada pelo desejo”.

Para Verena Lima, mestra em Têxtil e Moda pela Each-USP e pesquisadora de design de moda sustentável, não existe sustentabilidade real dentro do capitalismo. “A mudança não pode ser apenas nos produtos, o foco no crescimento econômico contínuo e a qualquer custo também precisa ser mudado”. Ela diz que pensar em novos sistemas econômicos é uma “utopia necessária”. 

A construção de um modelo de produção e consumo que consiga aliar acesso e sustentabilidade passa pela diminuição da produção, horizontalização das relações de trabalho e mudança das noções de posse, dos hábitos de consumo e das relações de poder, explica Verena. 

A pesquisadora acredita que a universidade precisa ser um espaço para discussão de novos modelos econômicos. “A universidade pública é, foi, e precisa ser, lugar de resistência e de um pensamento e uma prática críticos, ela precisa estar presente na formação de recursos humanos, na produção de conhecimento, e na atuação junto à sociedade”.