Lilia Schwarcz: “O bolsonarismo é um fenômeno social de ressentimento”

A historiadora, antropóloga, escritora e professora da USP fala sobre eleições, bolsonarismo, sequestro de símbolos nacionais e construção de memória

por Laura Guedes

Lilia Schwarcz
Foto: Arquivo pessoal/Instagram

Em meio a um cenário político em ebulição no Brasil e às eleições consideradas as mais importantes da história da democracia nacional, o Jornal do Campus conversou com Lilia Schwarcz, intelectual reconhecida em todo o país e professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Além de abordar o contexto e o papel da academia no decorrer de tais desdobramentos, ela falou sobre seu novo livro – O Sequestro da Independência: Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, escrito em parceria com Lúcia Stumpf e Carlos Lima Júnior –, a construção da memória e o tribunal da história.

JC – Na sua visão, como podemos explicar os resultados do primeiro turno das eleições de 2022?

LS – Precisamos entender que democracia é processo aberto. O cidadão só resolve mesmo o que vai fazer na urna. Isso que o processo do dia 2 de outubro mostrou. Eu já vinha advogando há muito tempo contra a política do já ganhou. Muita gente achava que tudo se resolveria de maneira fácil no primeiro turno, eu particularmente já não acreditava, e a decepção se sobrepôs ao que foi uma vitória. É preciso que a gente lembre que o Luiz Inácio Lula da Silva há pouco tempo estava totalmente fora do jogo político, inclusive na prisão. Lula venceu o primeiro turno, isso que muita gente esquece. E, sobretudo, é um fato inusitado que um presidente em exercício não vença, se não já no primeiro turno, ou ao menos não chegue ao segundo turno como candidato vitorioso. É preciso considerar que se os números de Luiz Inácio Lula da Silva estavam na margem de erro, os de Jair Bolsonaro surpreenderam, saíram da margem de erro, foram bem superiores, assim como a formação que estamos vendo no Congresso e, sobretudo, no Senado de pessoas muito leais ao bolsonarismo. Existiu esse fator surpresa. Publiquei, no início de 2019, o livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro, onde eu defendia duas ideias. A primeira é que o nosso presente estava cheio de passado. A segunda ideia, para aqueles que reagiram com surpresa à eleição de Jair Bolsonaro em 2018, era que os brasileiros sempre foram autoritários. Vamos passar para 2022, o que as urnas mostraram? O autoritarismo dos brasileiros, localizado em determinadas regiões como o Sul e em São Paulo. Essas são regiões sempre foram autoritárias e se eu voltar a história podemos pensar que quando se deu a abolição da escravidão, em maio de 1888, as elites reagiram fortemente, tanto que a monarquia cai em 1889 porque perde o apoio das elites conservadoras que pretendiam que a escravidão se eternizasse no Brasil. Como nós podemos entender 1964? Como uma reação que foi sendo cozinhada no caldo desde as leis que deram mais direitos aos grupos trabalhadores, a nossa CLT, e que resultou em 64, uma reação dos grupos conservadores à maior inclusão na sociedade brasileira. Acho que esses são dados que podemos pegar na nossa história. Também podemos dizer que essa reação foi sendo urdida com a crise de 2013, com as jornadas de 2013, mas também com o impeachment da presidente Dilma. Então, é um movimento de mais longo curso. A gente precisa compreender que Jair Bolsonaro pode ser um acidente. Acho que ele é um sintoma do autoritarismo brasileiro. Porém, também ficou claro que se Jair Bolsonaro como pessoa é um acidente, o bolsonarismo, enquanto fenômeno social, não é. O bolsonarismo enquanto movimento é aliado de um movimento de maior tamanho, mundial, que criou esses líderes homens supremacistas brancos de classe média alta e que atuam na base do populismo digital. É um fenômeno para além de Jair Bolsonaro, acho que existem muitos elementos pra gente entender o que aconteceu em em 2022, mas também têm muitos elementos para pensarmos que aguentamos quatro anos de governo Jair Bolsonaro e vamos aguentar mais 23 dias.

A gente precisa compreender que Jair Bolsonaro pode ser um acidente. Acho que ele é um sintoma do autoritarismo brasileiro. Porém, também ficou claro que se Jair Bolsonaro como pessoa é um acidente, o bolsonarismo, enquanto fenômeno social, não é.

JC – Hoje, o bolsonarismo é maior que o Bolsonaro?

LS – Penso que, como fenômeno de longo curso, o bolsonarismo vai continuar para além de Jair Bolsonaro, que sempre foi um deputado do baixo clero na câmara, sem grande expressividade, apenas um provocador. Ele, de alguma maneira, centralizou um movimento maior do que ele, que é esse movimento que estava reprimido desde a Constituição de 1988, essa que em seus parágrafos teve todo um movimento da sociedade brasileira, como dizia Ulisses Guimarães, enojado para com a ditadura militar e de maior inclusão social. O bolsonarismo é um fenômeno social de ressentimento que é maior do que Jair Bolsonaro. 

JC – Qual papel você enxerga para a USP não somente nessas eleições, mas também depois delas, em uma reconstrução da democracia? 

LS – O papel da Universidade de São Paulo, como o papel da ciência, da academia, do corpo docente e do corpo discente é muito grande. A universidade de uma forma geral e a Universidade de São Paulo de uma forma particular já deram muitas mostras de sua capacidade de resiliência e de insubordinação cidadã à favor da democracia. Temos toda tentativa por parte de um setor da sociedade mais retrógrado de homogeneizar os dois lados dizendo que são radicalmente iguais. É uma tentativa ideológica, se não ingênua, de dar paridade há lados que não são lados. Falarmos nos dias de hoje em que um dos lados defende as armas e já matou três pessoas. O outro lado defende uma reação democrática, nunca recorreu a esses tipos de linguajar. Um menciona golpe e ditadura militar a todo momento. O outro, menciona a Constituição Cidadã a todo momento. Não há paridade. Também temos uma situação de impasse no governo de São Paulo, a oposição Tarcísio e Fernando Haddad. Fernando Haddad, um professor da Universidade de São Paulo, que sempre viveu em São Paulo conhece o estado. Tarcísio não conhece São Paulo, trata-se desse tipo de candidato cogumelo, ou seja, que brota da terra de um momento para o outro. Acho que a USP tem que ficar alerta. É hora de pensarmos fora da caixinha. A USP tem um papel muito grande na produção de conhecimento científico, mas é uma universidade pública e que tem que dar, também, se o contexto assim pedir, respostas públicas diante desse crescimento do autoritarismo. 

A USP tem um papel muito grande na produção de conhecimento científico, mas é uma universidade pública e que tem que dar, também, se o contexto assim pedir, respostas públicas diante desse crescimento do autoritarismo.

JC – Falando de seu livro mais recente, O Sequestro da Independência: Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, quais diferenças você enxerga entre a Ditadura Militar e o bolsonarismo nesse sequestro de elementos nacionais?

LS – Esse livro publiquei junto com a Lúcia Stumpf e o Carlos Lima e o que mostramos é que a independência, desde a República, seguiu uma tradição republicana das festas cívicas. A tradição era colocar o povo na rua, com desfiles. Podiam ter militares também. Mas a ideia era mobilizar os estudantes, no sentido da independência como um sentido forte de liberdade. Liberdade republicana. O que vemos desde o contexto da Ditadura Militar é o que chamamos de sequestro da independência. Sequestro no sentido de deslocamento de sentido, de significado. A ditadura estava sequestrando pessoas também, literalmente, torturando e matando. Se prepararam para celebrar os 150 anos da independência do Brasil e sequestrar a festa cívica transformando-a em uma festa militar, com tanques, soldados e demonstração de força bélica, transformando o episódio da independência em um episódio militar, como se o príncipe fosse ele próprio militar. A Ditadura Militar também inaugurou essa comemoração mórbida, essa necropolítica, trazendo o corpo de Dom Pedro I. Podemos dizer que Jair Bolsonaro fez a mesma coisa. Primeiro, usou a festa pra não falar da crise. Igual no contexto da Ditadura Militar. Usou a festa a para elevação da sua própria pessoa e, nesse caso, qual é a diferença? Uma triste coincidência, que é justamente a festa de 200 anos cair muito próxima do período eleitoral. Jair Bolsonaro usou os recursos do Estado, que eram garantidos para festa, para a sua própria eleição e transformou a festa em um palanque político para encenar a sua recondução à presidência. E fez mais: trouxemos o coração de Dom Pedro I emprestado, que veio com requintes de chefes de Estado, em mais uma manifestação mórbida. Temos que pensar que tipo de história é essa que estamos aqui descrevendo. Uma história que pensa o passado como algo que já aconteceu. Que é uma perspectiva muito distinta da que eu e muitos historiadores e historiadoras defendemos. Eu não estou aqui fazendo um exercício anacrônico. O que quero dizer é que cada momento produz a sua história. Jack Le Goff, dizia que a história era filha do seu tempo, porque cada tempo coloca o passado questões no presente. Me oponho frontalmente ao modelo de história da construção da ideia de uma independência muito conservadora, com um príncipe que vem de fora trazer a nossa liberdade. Uma independência muito branca, imperial e colonial. 

JC – Símbolos nacionais como a bandeira, o hino e a camisa da seleção ainda podem ser desvinculados de Bolsonaro?

LS – Governos fascistas sempre manipulam os símbolos nacionais com o sentido de fazer com que digam respeito apenas a eles próprios. Você pega a grande linguagem dos nazifasmos, do século passado, que se pautavam pelos símbolos pátrios, pela construção emocional de uma nacionalidade que era excludente, porque incluía apenas alguns e excluía muitos, mas que falava em termos de pátria, de nação. Jair Bolsonaro, seguindo essa bíblia dos governos nazifascistas e de governos populistas também, logo que surgiu sequestrando para si elementos pátrios como a bandeira, o hino e a camisa da seleção brasileira. Teremos teremos Copa do Mundo daqui a pouco e como diz o Conselheiro Aires, grande figura de Machado de Assis, as coisas só são previsíveis quando já aconteceram. Vamos ver como se dará essa batalha de narrativas. No momento em que nós conversamos, logo depois do primeiro turno, está difícil recuperar, porque símbolos foram de fato sequestrados. Acho que vamos recuperar no futuro, não imediatamente, mas vai ser preciso que os brasileiros e brasileiras retomem símbolos que são de todos. Até porque não sabemos quem sairá vitorioso no dia 30 de outubro,  mas aquele que sair terá um desafio muito grande que será dirigir uma nação muito dividida. Eu temo que Jair Bolsonaro não tenha essa qualidade. Ele, em quatro anos de governo, mostrou que não pratica a produção de consensos, está mais interessado em fortalecer a sua própria base. Se Luiz Inácio Lula da Silva sair vitorioso, que é o que eu espero, terá esse desafio que será não apenas governar para aqueles que concordam e que o elegeram, mas também tentar a dialogar, estabelecer vínculos e incluir aqueles que não votaram nele, para que fique claro como a democracia tem que ser um regime para todos. A democracia, como eu sempre digo, é um regime incompleto e essa é sua grande beleza e desafio. Nunca conquistamos direitos para sempre. É sempre preciso conquistar mais uma vez. E no caso do futuro presidente, ele precisará falar de direitos em um sentido muito amplo. Não só pensar naqueles que não o elegeram, mas também nos setores que historicamente foram excluídos das instâncias de participação.

A democracia, como eu sempre digo, é um regime incompleto e essa é sua grande beleza e desafio. Nunca conquistamos direitos para sempre. É sempre preciso conquistar mais uma vez.

JC – Com a escala do autoritarismo recente, você acha que o mito da harmonia no Brasil caiu por terra de vez ou ainda existem forças políticas que utilizam dessa ideia para angariar votos e criar uma imagem que não existe do país?

LS – Penso que Jair Bolsonaro tenta trabalhar com essa imagem de democracia racial, de um país pacífico, só teve uma guerra, a do Paraguai, não reconhecendo que esse é um país muito desigual, que tem níveis de violência epidêmica. E eu não estou, com isso, querendo dizer que a violência faz parte do DNA do brasileiro, ninguém nasce violento, esses níveis epidêmicos são uma denominação para países que têm uma determinada quantidade de pessoas mortas por dia, por semana, por mês. O Brasil faz parte desses países epidemicamente violentos e é campeão de feminicídio e de ataques às comunidades negras e aos LGBTQIA+. É muito perigoso, no Brasil, ser um líder indígena no momento. Não estou falando aqui do alto da minha percepção, se você for ver a propaganda oficial do governo Bolsonaro, esse modelo de democracia racial de harmonia do país pacífico ainda é absolutamente vigente. O que cabe à USP, aos cientistas sociais e aos cientistas humanos? Mostrar como é e a que serve esse mito. O mito da democracia racial, da harmonia, e o atual mito da meritocracia perpetuam uma estrutura de classes e uma sociedade muito desigual. Sou professora de Antropologia da Universidade de São Paulo e penso que temos que combater o mito, que fica porque diz respeito a grandes contradições em uma sociedade. Podemos pensar assim até no apelido que Jair Bolsonaro leva de seus fiéis seguidores. Muitas vezes, os mitos são tremendamente persistentes. E é por isso que as Humanas têm um papel fundamental no sentido de desconstruir essas falas, essas narrativas persistentes. 

JC – Você acha que é justa a afirmação que o brasileiro é um povo de memória curta? 

LS – Nesse caso não se trata de justiça não, mas de aferição. Não sei se a memória é curta ou se nós fazemos questão de não ver. Costumo diferenciar a ideia de enxergar e ver. Enxergar é uma capacidade biológica, ou seja, a maioria das pessoas, não todas, podem, por características biológicas da nossa anatomia, enxergar. Mas isso não faz com que nós possamos ver. Gosto muito do Michel-Rolph Trouillot, historiador do Haiti e escritor do livro Silenciando o passado. Ele chama atenção para como a memória é efeito de ver um pouquinho e esquecer muito. No Brasil, somos um país de maioria preta e, mesmo assim, temos uma história muito branca, masculina, imperial e colonial. Essa é uma opção, não é uma questão só da memória. Temos que parar de achar que a memória é algo natural. A memória é uma construção. Construímos aquilo que queremos lembrar e que queremos esquecer. Precisamos entender que a memória é uma narrativa, é uma construção histórica política e social. Temos uma memória bastante forte para o que resolvemos lembrar e uma muito curta para o que nós queremos esquecer. 

A memória é uma construção. Construímos aquilo que queremos lembrar e que queremos esquecer.

JC – A história realmente cobra? 

LS – Penso que sim, a boa história. Também temos que lembrar que faz parte desses governos autoritários construir a própria história. Uma história ideológica, nesse sentido. Então, não sei se toda história cobra. Mas eu acho que a história como eu a entendo, a história crítica, como uma uma leitura cuidadosa dos documentos, cobra sim e não tenho nenhuma dúvida de que Jair Bolsonaro vai para o lixo da história. Vai direto para um tribunal da história que o julgará pelos seus feitos. Ele será responsabilizado pelas quase 700 mil mortes por Covid. Ele será responsabilizado pela devastação da Amazônia. Ele será responsabilizado pela fome ter voltado ao país. Ele será responsabilizado por ter permitido um ambiente tóxico e que vem matando as lideranças indígenas e lideranças negras. Ele será responsabilizado por sua política de ódio em relação às comunidades LGBTQIA+. Ele será responsabilizado por armar a população e tornar, dessa maneira, a população brasileira, ou pelo menos parte dela, ainda mais violenta. Acho que disso ele não escapa.

Mas eu acho que a história como eu a entendo, a história crítica, como uma uma leitura cuidadosa dos documentos, cobra sim e não tenho nenhuma dúvida de que Jair Bolsonaro vai para o lixo da história.