O ingresso capaz de transformar uma vida

A trajetória para entrar no ensino superior é turbulenta, principalmente para os mais vulneráveis. Todavia, tal conquista pode representar uma grande mudança na realidade dos estudantes

por Caroline Kellen

Arte: Mariana Carneiro / Fotos: USP Imagens, Freepik,Instagram e TextureLabs

Um cursinho social possibilita a construção de um caminho que pode levar um pré-vestibulando sonhador em situação de vulnerabilidade até as portas de uma universidade. É o que aconteceu com Josiane Ramos, 21, hoje uma graduanda em ciências biológicas com ênfase em ciências ambientais e, há alguns anos atrás, uma estudante do Vestibulandos da cidadania. Todavia, embora o enfoque dessa história seja a grande conquista de Josiane, existe um longo caminho percorrido para chegar a tal ponto, e mantê-lo no status de uma conquista que proporciona vislumbres de novos horizontes.

“Eu escolhi ingressar na universidade sobretudo para mudar de vida. Eu não tenho nenhum familiar que esteja em uma graduação, e almejava algo diferente para minha vida. E, por isso, vi que o único jeito de crescer na minha vida, ter oportunidades, um futuro, conseguir conquistar minhas coisas, ser independente, viver de forma tranquila, era a partir de uma graduação”.

Para Josiane, a decisão de ingressar no ensino superior começou a tornar-se sólida quando ela vê o próprio potencial durante o ensino médio, na Etec de Itaquaquecetuba, e decide dedicar-se a alcançar esse objetivo, que transcende sua ascensão individual. 

Arte: Mariana Carneiro / Fotos: USP Imagens, Freepik e TextureLabs

“O surgimento do movimento dos denominados ‘pré-vestibulares populares’ está associado à desigualdade de  acesso ao ensino superior brasileiro, particularmente aos pobres e  afro-descendentes. A luta pela democratização do acesso ao ensino superior abre um debate sobre o próprio sistema de ensino, pois sua progressiva universalização ainda contrasta com a qualidade do ensino ofertado à juventude brasileira.”.

(PEREIRA, RAIZER E MEIRELLES, 2010, p. 1)

Josiane conta que a atuação da equipe do cursinho foi fundamental para que ela mantivesse o foco durante o processo pré-vestibular, aprendesse os conteúdos exigidos e fomentasse, em si, uma visão social da própria trajetória. “Não basta para mim, como indivíduo, alcançar os meus objetivos [de formação e profissão], eu quero que a minha comunidade, as pessoas que estão à minha volta, tenham as mesmas oportunidades que eu tive. Eu quero atuar de uma forma que eu gere impacto na comunidade.” E, a escolha dessa modalidade de cursinho, que fez tamanha diferença em sua vida, era a única possibilidade que ela tinha para conseguir seu ingresso, tendo em vista sua situação financeira.

Há um claro componente de ativismo nessas tentativas [no decorrer do movimento] de preparação ao vestibular, sendo isso importante para a  mobilização das pessoas, uma vez que o espaço de um cursinho é uma  reunião de sonhos e necessidades que congrega pessoas com trajetórias  similares e que, de alguma forma, não se acomodam diante da estrutura social que as  oprime.

(PEREIRA, RAIZER E MEIRELLES, 2010, p. 4)

Arte: Mariana Carneiro / Fotos: USP Imagens, Freepik e TextureLabs

Após a aprovação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela passa a morar nesse estado e despede-se, por um tempo, de São Paulo. “Eu estou em uma cidade que eu não tenho moradia, nem família e, a partir da universidade, tenho uma renda mensal e vivo em uma moradia estudantil, o que supre grande parte das minhas necessidades”. E, em sentido oposto, a realidade que a estudante vive hoje pode parecer utópica ou apenas inexistente para inúmeros brasileiros em situação de vulnerabilidade – os processos preparatórios, as possibilidades de permanência e transformações que uma graduação pode proporcionar afastam-se de seus cotidianos.

Para de fato pertencer “a todo o povo”, a universidade precisa  ser repensada e criar  mecanismos de inclusão desses segmentos  historicamente excluídos de seu ambiente. Sabemos que,   paradoxalmente, como patrimônio público e estatal, as  universidades públicas são mantidas inclusive pelos trabalhadores e   desempregados que a elas não têm acesso. 

(PEREIRA, RAIZER E MEIRELLES, 2010, p. 2)

Logo, o suporte dado aos estudantes de muitas universidades públicas, auxílios de permanência, costuram esse sonho acadêmico ao real, no decorrer do curso. Josiane relata que “a graduação teve uma importância imensa, possibilitou coisas que eu jamais imaginei que eu pudesse conseguir. Eu já fiz estágios a partir da graduação, já fiz projetos de extensão, consegui adquirir bolsas a partir de monitorias e auxílios.” E nessa realidade, a estabilidade financeira e acadêmica que a universidade pode proporcionar traceja o mestrado no amplo horizonte da graduanda, além da estruturação de sonhos materiais.

PEREIRA, Thiago Ingrassia, RAIZER, Leandro E MEIRELLES, Mauro. A luta pela democratização do acesso ao ensino superior: o caso dos cursinhos populares. REP – Revista Espaço Pedagógico, v. 17, n. 1, Passo Fundo, p. 86-96, jan./jun. 2010. http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/2029/1262. Acesso em 20/10/2022