Pelos caminhos escuros da USP

Falta de infraestrutura e auxílio são problemas recorrentes para pessoas com deficiência visual na Universidade

Por Amanda Marangoni e Emilly Gondim

Foto: Bianca Camatta

“Se não há espaço para alunos com deficiência ingressarem, nunca vão precisar adaptar a universidade para nós. Volta a ser o velho discurso de quem tem uma deficiência que se adapte”

diz Marcela Cordeiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo

Na Universidade de São Paulo, pessoas com deficiência visual (PCD) se deparam com inúmeros desafios. As estruturas físicas de acesso se revelam deficitárias ao serem confrontadas com as necessidades desse grupo. Estudante da FAU, Marcela Cordeiro é graduanda em Arquitetura e Urbanismo e vive com visão monocular, cegueira no olho esquerdo e fotofobia, que a impede de ter contato visual direto com a iluminação. “O campus não tem iluminação adequada, nem piso tátil onde deveria ter”, revela a estudante sobre a acessibilidade na USP. Em relação aos ônibus circulares, ela diz que consegue utilizá-los apenas quando acompanhada de algum amigo, assim como é o caso de frequentação dos restaurantes universitários. Em dias em que sua visão está pior, ela diz que sua “única opção é faltar, porque a falta de acessibilidade no campus atrapalha bastante”. 

Ela também relata que o acesso pode ser frustrado devido às escadarias: “Descer e subir escadas para mim às vezes é um problema, porque não tenho visão de profundidade”. As dificuldades de acessibilidade são inúmeras; Micaely ainda revela que é comum se “acidentar com objeto no caminho, porque não tem nada sinalizando” e que, devido à carga horária integral de seu curso, não pode frequentar às aulas do Departamento de Projeto até o fim, pois precisa chegar à estação antes do anoitecer, ou não consegue enxergar.

Para além das estruturas físicas, também existem questões de aprendizado a serem debatidas. Marcelo Gonçalves, cientista político formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), possui distrofia da retina, fala que devido à complicações para converter os materiais das aulas, que possuem altas cargas de leitura, precisou do auxílio de seus pais para ler os materiais. “Não tive nenhum apoio, nem da universidade nem mesmo de outra pessoa com deficiência visual. Talvez eu, pessoalmente, pudesse ajudar disponibilizando algumas coisas às pessoas que precisassem, mas a universidade continua a mesma, não mudou em nada”. Ele também fala que esses foram esforços individuais, e que “não foi nada institucional, infelizmente”.

A Faculdade de Educação (FE-USP) e a Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA-USP) possuem a sala de acessibilidade, porém sem nenhum responsável preparado para utilizar as máquinas. “Um dos aparelhos era um scanner que faz a leitura do livro, só que o pessoal da biblioteca não sabia usar, ninguém teve treinamento para isso” conta Marcelo.

Questionamos o que a Universidade faz para auxiliar o estudo de pessoas com deficiência visual para a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (Prip), mas não tivemos retorno até o momento da publicação desta matéria.

Sem luz no fim do túnel

A Lei que regulariza as cotas sociais completou 10 anos no mês de agosto e foi implementada na Universidade somente em 2018. Ainda em 2016 foi aprovada a Emenda 13.409/2016 que passou a incluir as pessoas com deficiência nas cotas ofertadas. Entretanto, esse cenário não avança na USP, “cotas para PCD nem sequer são cogitadas, todas as vezes que eu levantava a pauta, o DCE (Diretório Central dos Estudantes) ignorava”, lamenta o cientista político.

Até hoje, a pauta não é debatida no ambiente acadêmico como prioridade.”Queremos mapear esses estudantes, saber quais são suas deficiências (ou qual, se tiver apenas uma) e como é a acessibilidade da Universidade para elus. Queremos saber se existem coletivos e/ou se há o desejo de criar algum, para que haja fortalecimento e protagonismo” diz a diretora do DCE ‒ organização política que luta pelos direitos dos estudantes ‒ Isabella Ungano, aluna de Gerontologia da USP.

Para Marcelo, isso é resultado da falta de amadurecimento político em relação à autonomia das pessoas com deficiência, “tudo é tratado como uma questão da natureza e que a única coisa que pode fazer é caridade, mas não é isso”, relata ele.

A falta de PCD em ambientes acadêmicos resulta na perpetuação de infraestruturas não acessíveis, um ciclo sem fim. O corredor do Restaurante Universitário Central possui piso tátil; contudo, com a reforma de retorno às aulas após a pandemia, algumas partes do piso foram retiradas, apresentando falhas recorrentes em todo o caminho. A obra foi finalizada ainda no primeiro semestre.

 Marcela relatou que durante uma de suas aulas de arquitetura, o professor disse que era válido sacrificar a acessibilidade de seus projetos priorizando a estética. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabelece na NBR 16.537,  “Ao acatar os preceitos do desenho universal, o projetista está beneficiando e atendendo às necessidades de pessoas de todas as idades e capacidades”. Ou seja, apesar da não obrigatoriedade de construir um projeto acessível, é o ideal para que todas as pessoas possam frequentar com autonomia os locais.

Mas apesar da ABNT estabelecer diversas normas, algumas delas não são tão funcionais quanto deveriam, “Na FFLCH têm sinos próximos às portas, sua função é indicar portas ou janelas com o barulho ao ventar, mas e quando não há vento?” questiona Marcelo. Ele ainda diz que o piso tátil só é útil quando já se conhece o local, “afinal, de que adianta saber que posso ir reto se não sei se o que eu procuro está à frente?”

Escadaria sinalizada com piso tátil na FFLCH. Foto: Bianca Camatta/JC

Pode não ser música mas salva vidas

Algumas implementações para viabilizar a acessibilidade no campus da USP transformaram positivamente a experiência de PCD. A implementação dos faróis sonoros nas faixas de pedestre são um diferencial otimista para Marcelo, ainda que atravessar as ruas possua seus desafios. “O maior problema foi sempre atravessar a rua. É verdade que pouquíssimos lugares em São Paulo têm faróis sonoros, mas mesmo assim eu questiono atravessar a rua sozinho por razões de ciclistas”, explica o estudante. 

Professores também buscam, muitas vezes, auxiliar a aprendizagem dos alunos com deficiência visual. Quando precisou cursar a aula de libras, uma linguagem necessariamente visual, Marcelo teve dificuldades e o auxílio não partiu da instituição, mas dos profissionais envolvidos: “Me matriculei na matéria e conversei diretamente com o professor responsável pela disciplina e, novamente com o auxílio dele e da monitora, consegui aprender um pouco e participar da matéria, concluindo meu curso.”

Infelizmente, nada do que foi feito ficou registrado, caso novos alunos com baixa visão adentre ao curso terão de descobrir sozinhos como sobreviver à graduação. “Todas as vezes que dependi da burocracia da USP, eu não tive retorno ou auxílio” contou o Marcelo em relação a busca por materiais e opções de como faria a disciplina de Libras. Ele ainda se oferece para ajudar novos alunos que tenham dúvidas.

A expectativa é que o cenário mude nos próximos anos, assim como a adesão de cotas raciais tornaram a Universidade de São Paulo mais plural e diversa. O caminho ainda é longo, é como se estivesse no escuro, mas no fim do túnel há de ter um vislumbre de acessibilidade.