“Somos poucas, mas somos unidas”: as mulheres da Poli

Minoria dentro da Escola Politécnica, as mulheres da engenharia se unem frente às dificuldades

por Julia Custódio

Foto: Duda Ventura/JC

Em uma disciplina optativa, uma aluna da Escola Politécnica da USP (Poli-USP) se surpreendeu com a quantidade de mulheres na sala. Além das vinte e poucas mulheres, havia apenas mais três homens. A composição majoritariamente feminina foi uma novidade para Veronica Duval, estudante de Engenharia de Produção, acostumada com a predominância dos homens nas salas de aula.

Segundo a última versão de 2021 do Anuário Estatístico da USP, produzido pelo Escritório de Gestão de Indicadores de Desempenho Acadêmico (Egida), o número de alunas de graduação e pós-graduação nos cursos da Poli alcança cerca de 21% dos alunos da unidade. Em um de seus paradoxos, a engenharia, representada pelo símbolo de Minerva, deusa da sabedoria, não tem nem um terço do seu corpo discente composto por mulheres.

“Engenharia? Sério?”

No fim do ensino médio, Veronica contou que estava em dúvida de qual curso ingressar na faculdade. Em uma visita organizada a Poli, toda a dúvida foi dissipada, ela queria engenharia. Poder transformar números em projetos para ajudar pessoas a encantava, e ainda a encanta. 

Apesar de ter recebido perguntas como “engenharia? por que você não escolhe enfermagem?”, depois de quatro semestres no curso, ela não se arrependeu da decisão. Muito do preconceito contra mulheres em áreas de ciências exatas começa fora da carreira: pouco ou nenhum incentivo durante os anos escolares em carreiras de ciências, pré-conceito de “profissões femininas” e “profissões masculinas” e pouca representatividade nos meios acadêmicos.

Veronica também contou que homens e mulheres têm o mesmo desempenho dentro do curso, mas muitas pessoas pensam que as mulheres têm maiores dificuldades acadêmicas e, por isso, são vistas com “dó”.

Vivência politécnica

A porcentagem de mulheres varia muito entre os cursos oferecidos pela Poli. De acordo com um levantamento dos Centros Acadêmicos da Escola em 2020, a Engenharia ambiental era o curso com mais mulheres, cerca de 40%, e as Engenharias Mecânica e Mecatrônica o menor número, cerca de 15%.

A diferença numérica entre homens e mulheres na graduação se expressa em situações no dia-a-dia das estudantes da unidade e como elas se relacionam e enxergam o ambiente acadêmico. “Há momentos em que você está bandejando com seus amigos, papeando, estudando, e aí dá um estalo na sua cabeça: ‘eu sou a única mulher nesse ambiente’. E por incrível que pareça, isso é muito comum”, diz Isabela Ramayana, estudante de Engenharia Metalúrgica e presidente do centro acadêmico do curso.

Foto: Duda Ventura/JC

Alunas dos diferentes departamentos relatam que, às vezes, são interrompidas quando falam em sala de aula — inclusive durante o ensino remoto —, dão ideias e não são ouvidas, mas quando um homem fala a mesma coisa as ideias são levadas em conta. A estudante Veronica faz a comparação: “Essas vivências são como uma integral, a soma de pequenos pedaços de um gráfico que quando se juntam se tornam algo maior.”

Quando perguntado se os homens têm alguma noção de como é a experiência feminina na Poli, Mateus, estudante de Elétrica, comentou que acha que a maioria tem pouca noção da diferença de experiência entre os gêneros. “O que eu observei nas turmas que participei foi que quanto mais próximo a proporção de mulheres em relação a homens, maior a participação delas durante as aulas. Tanto para tirar dúvidas quanto para participar da discussão mesmo”, diz.

A interação feminina na Poli vai mais além e se reflete em como as estruturas dos prédios afetam o cotidiano. Algo simples, os banheiros. Na Poli-Biênio, até o começo do segundo semestre deste ano, não havia banheiro feminino no primeiro andar, as alunas tinham que subir as escadas para poder usar os banheiros dos outros andares. 

Porém, quando aberto o novo banheiro no andar, ele é inutilizável. Cinco das seis cabines estão interditadas e, na única aberta, o vão da porta é muito grande e mostra bastante do que acontece dentro da cabine. Por isso, as alunas ainda preferem subir os andares para usar os banheiros.

O Biênio não é a exceção, no prédio de Mecânica, o banheiro feminino está fechado há certo tempo, o que obriga as alunas cruzarem o prédio em busca de um funcional. Foto: Julia Custódio/JC

O corpo docente

Além do número de alunas, as professoras também são minoria do corpo docente da Politécnica. Dados do Anuário Estatístico da USP apontam que dos 389 professores da escola, apenas 50 são mulheres, contabilizando 12,85%.

Liedi Bernucci ingressou na Poli em 1977 e se formou em Engenharia Civil, foi a primeira mulher vice-diretora até 2014 e a primeira mulher diretora da história da Poli, com mandato até 2021. Hoje ela é professora do Departamento de Engenharia de Transportes. 

“Quando eu ingressei na Poli, éramos apenas 4% de mulheres. Tínhamos o respeito dos alunos, funcionários e da maior parte dos professores. Alguns poucos docentes expressavam preconceito; algumas vezes subliminares, e outras diretamente. Um deles gostava de dizer que as mulheres entravam na Poli e depois se casavam, não exercendo a profissão. Disse certa vez que eram vagas ‘perdidas’. Havia professores cordiais e elogiavam as boas alunas”, conta Liedi. 

A professora apontou que, durante a carreira, as mulheres enfrentam mais preconceitos, uma dificuldade, mas transponível, e que há o sentimento de que devem ser muito boas no que fazem para serem consideradas relevantes dentro da profissão. Como a primeira mulher no cargo de diretora da Poli, ela acredita na importância de inspirar as alunas e mostrar que é possível, “mas não basta o exemplo. Precisa abrir portas, viabilizar encontros das jovens, ser solidária, ouvir, respeitar e compor comissões com diversidade.”

Liedi enfatiza: “Para as jovens que querem seguir a carreira: siga o teu desejo profissional, ele deve ser teu e de mais ninguém, lute pela tua escolha. Para minha alunas: acreditem em sua capacidade, dediquem-se, estudem, preparem-se, e saibam que podem ser grandes profissionais.”

Redes de apoio

Apesar da diferença de porcentagem entre homens e mulheres na Escola Politécnica, as alunas encontraram os seus modos de se encaixarem e de se sentirem confortáveis dentro dos ambientes. 

Foto: Duda Ventura/JC

Gabriela Ferreira e Sara Vilela, alunas de Engenharia de Produção, falam sobre como as próprias alunas se organizam dentro de sala de aula: “Foi criado um grupo da turma só com mulheres, ali nós trocamos experiências, compartilhamos dicas e ajudamos uma a outra com as matérias do curso”, contam. Além disso, elas ressaltam a importância de projetos de extensão oferecidos pela faculdade para a integração das meninas de diferentes cursos e a troca de experiências entre elas.

Para ambas, participar do Centro Acadêmico de Engenharia de Produção, o CAEP, teve grande importância na integração delas e para o sentimento de pertencimento dentro do curso.

Os centros acadêmicos são entidades estudantis que representam os alunos de cada curso. Eles realizam as boas-vindas dos calouros na semana de recepção e organizam atividades acadêmicas e extra acadêmicas, além da representação estudantil. Na Poli, a maioria dos centros acadêmicos são presididos por mulheres. 

“Desde que eu entrei na faculdade, todas as presidentes do CMR [Centro Moraes Rego] foram mulheres. Isso sempre me deixava feliz de ver uma mulher em um cargo de liderança, mostra que mesmo com tantas dificuldades estamos em cargos de liderança e se destacando”, comenta a estudante Isabela.

Para além da integração dentro da Poli, as alunas também se preocupam em incentivar meninas e desmistificar estigmas da engenharia. Por isso, o Diretório Acadêmico da Poli organiza o Projeto Meninas na Poli, evento sobre os cursos de engenharia da Escola Politécnica para meninas estudantes do ensino médio de escolas públicas. “A engenharia ainda é uma profissão muito associada ao sexo masculino e, nesse contexto, é importante estimular o interesse das meninas na área das exatas, mas principalmente mostrar que esta é uma possibilidade e que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na engenharia”, destaca a organização estudantil.