Suicídio assistido: entre o direito à morte e à vida

Procedimento complexo é envolto por implicações, conflitos éticos e religiosos

por Rosiane Lopes

Arte: Victória Pacheco/JC

No dia 13 de setembro deste ano, morreu o cineasta Jean-Luc Godard aos 91 anos. Em comunicado à imprensa, Anne-Marie, esposa de Godard, anunciou que ele “morreu pacificamente em sua casa, cercado por seus entes queridos”. Segundo informações do jornal francês Libération, o diretor de cinema faleceu por meio do suicídio assistido. Familiares do cineasta declaram que ele não estava doente, mas sim exausto e que passar pelo procedimento foi sua escolha. 

Godard passou pelo método na Suíça, onde o suicídio assistido é legalizado. O país é um dos poucos a permitir que estrangeiros realizem o procedimento.  

A escolha do ator Alain Delon, de 86 anos, também repercutiu na mídia. No começo do ano, Delon declarou em sua conta no Instragam em mensagem de despedida que optou morrer pelo suicídio assistido. Em 2019, o astro de cinema sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Assim como Godard, Delon também vai passar pelo procedimento na Suíça.  

Casos como o de Godard e de Delon reacendem novas e velhas discussões sobre o suicídio assistido, sua aceitabilidade no Brasil, os entraves éticos em torno do procedimento e a dúvida de qual seria a diferença entre o método e a eutanásia.

O diretor de Acossado (1960) é considerado o pioneiro no movimento francês Nouvelle Vague. Godard revolucionou a cinematografia ao se distanciar do cinema tradicional hollywoodiano.  Imagem: Reprodução/Facebook
Alain Delon no Festival de Cannes de 2010. O ex ator e cineasta francês é conhecido por estrelar sucessos do cinema como O sol por Testemunha (1959) e Cidadão Klein (1976). Imagem: Frederic.roubieu\Wikimedia Commons

Suicídio assistido: panorama geral

“O suicídio assistido consiste no ato de um paciente com doença grave se autoadminstrar uma dose letal de um fármaco prescrito por um médico”, explica Luciana Dadalto, Bioeticista e advogada com atuação exclusiva em Bioética, doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina de Minas Gerais e mestre em Direito Privado pela PUCMinas. 

A diferença do suicídio assistido, ou morte medicamente assistida, da eutanásia está em quem administra a dose letal ao paciente. No primeiro caso, o próprio indivíduo autoadministra o medicamento, geralmente oral, que o leva a óbito. No segundo, uma equipe médica é responsável por administrar a dose medicamental. Existe ainda a ortotanásia, caracterizada pelo não emprego de métodos que objetivam postergar a vida de alguém em estado terminal. 

Segundo Alan Campos Luciano, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – IPq/HCFMUSP e um dos autores do livro Compreendendo o Suicídio (2021), “alguns países têm recentemente permitido o suicídio assistido e isso em diversas modalidades”. É possível realizar o procedimento em casos de “doença orgânica terminal”, “transtorno psiquiátrico dito incurável” e também na ausência de ambas condições.

Dadalto conta que o funcionamento do suicídio assistido depende das regras próprias de cada país em que o procedimento é regulamentado. “Há diferenças no funcionamento em cada um dos países”. Independentemente de qual seja o país, existem processos burocráticos, que levam meses, para que o paciente passe pelo método. O procedimento é permitido em países como Alemanha, Bélgica, Canadá, Espanha, Holanda, Suíça e em alguns estados dos Estados Unidos —  Califórnia, Oregon, Vermont e Washington. A Colômbia é o único país da América Latina a legalizar a morte por suicídio assistido.

E no Brasil?

No país, tanto o suicídio assistido quanto a eutanásia são proibidos. Conforme a legislação brasileira, ambos os procedimentos são criminalizados. “Há no Brasil o crime de ‘induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação’, previsto no artigo 122 do Código Penal. Como para realizar o suicídio assistido o paciente depende da prescrição de um fármaco, a interpretação majoritária no Brasil é que o prescritor incorreria neste crime”, explica Dadalto. 

No Brasil, o suicídio assistido é grande vetor de discussões que envolvem questões éticas e religiosas, que influem sob a legislação e na possibilidade de legalização da técnica no país. 

“A sociedade brasileira é fundada na moralidade judaico-cristã, que entende a vida como um presente divino e não como algo pertencente ao indivíduo; assim, temos dificuldade na defesa e na aceitação do direito de morrer como um direito individual e fundamental”, conta Dadalto. “Esta moralidade está presente nas leis e nas normas deontológicas brasileiras que proíbem a disposição sobre a vida”, complementa. 

Depois da morte por suicídio assistido de Jean-Luc Godard ser noticiado, as opiniões sobre o procedimento ganharam espaço.

Internautas opinam em publicação de veículo jornalístico sobre a morte de Jean-Luc Godard. Imagem: Reprodução/Instagram

A complexidade dos casos psiquiátricos

Campos indica que a autonomia é um dos pilares máximos na bioética e que deve ser levada em consideração em casos do suicídio assistido. No entanto, o psiquiatra também pontua que o procedimento é cheio de implicações que devem ser levadas em conta, principalmente em casos psiquiátricos. 

“Existem muitas situações em que a nossa capacidade de deliberar está prejudicada”, explica. Segundo o profissional, parte dos casos de ação suicida estão relacionados a transtornos mentais, transtornos esses que podem afetar a capacidade de decisão de pacientes quanto à morte. 

O psiquiatra conta que a assistência em saúde mental no Brasil é precária. Para Campos, a prática do suicídio assistido requer muita maturidade social, o que no país não é bem estabelecido. 

“Hoje, a gente não tem uma estrutura pronta para conseguir avaliar a capacidade de consentir de cada um, em cada momento, e tampouco garantir que foram oferecidas as melhores chances e possibilidades antes de tomada de decisão [suicídio assistido]”, explica.