Cannabis medicinal no Brasil: ‘estamos indo ao contrário do que todos países vêm fazendo’

Após novos posicionamentos do Conselho Federal de Medicina, discussão sobre uso terapêutico da planta voltou à tona no país

por João Pedro Barreto

Substâncias encontradas na Cannabis Sativa podem ser extraídas da planta e usadas como medicamento. Imagem: Freepik

No dia 14 de outubro deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma nova resolução sobre a prescrição de Cannabis medicinal no Brasil. O texto surgiu para atualizar a orientação vigente, que é de 2014 e foi a primeira a regulamentar o uso de medicamentos à base de Cannabis no país. Entretanto, ao contrário do que se esperava, a nova diretriz não trouxe avanços e até restringiu ainda mais o uso destes medicamentos. “Nossa indignação é que era para ser algo mais abrangente e na verdade foi um retrocesso maior”, contou a Dra. Carolina Inka, médica dermatologista do Instituto de Medicina Orgânica de Goiânia (IMO).

Essas resoluções do CFM servem como orientação aos médicos do país de como prescrever esse tipo de medicamento. A publicação de outubro trouxe poucas atualizações, mas diminuiu as recomendações do uso terapêutico de Cannabis, que já eram poucas na anterior. No novo texto, a prescrição ficaria restrita ao canabidiol (CBD), um dos derivados da Cannabis, e ao tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes resistentes a terapias convencionais, o que já constava na resolução de 2014. A novidade é que, com ela, esses casos de epilepsia teriam que estar relacionados apenas às Síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut ou ao Complexo de Esclerose Tuberosa, enfermidades consideradas raras. Além disso, o CFM proibiu que médicos receitassem medicamentos à base de Cannabis para quaisquer outras enfermidades e que ministrassem palestras e cursos sobre o uso de produtos derivados de Cannabis, restrições que não existiam na norma anterior.

Logo após a publicação, diversos setores da sociedade civil reagiram contra a nova resolução. Ativistas da causa, médicos, pacientes e seus parentes se posicionaram pedindo a revogação da normativa que dificultaria ainda mais o acesso a tratamentos à base de Cannabis e a informações sobre o assunto. No dia 24, após pressão da sociedade, o CFM publicou: “Em virtude da repercussão da Resolução CFM nº 2.324, de 14 de outubro de 2022, esta Autarquia  decidiu  atender  às  solicitações  para  revisão  da  Resolução,  abrindo  assim  nova Consulta Pública para a participação de entidades médicas, médicos, e desta vez, também da sociedade civil”.

Como funciona a Cannabis Medicinal?

Os relatos mais antigos do uso terapêutico da planta da Cannabis Sativa datam de 2700 a.C., quando era usada na China para tratamento de algumas dores e enfermidades. Mas por que a Cannabis serve como remédio para o ser humano há tanto tempo? A resposta está no nosso corpo. O ser humano possui em seu organismo um sistema chamado endocanabinóide, um sistema de neurotransmissores e receptores que são responsáveis por regular diversas funções e atividades do corpo. 

A descoberta deste sistema é relativamente recente, do final da década de 1980, e ainda muitos estudos estão sendo feitos sobre o assunto. Entretanto ela surge para explicar porque a Cannabis funciona como medicamento desde a antiguidade. “Os fitocanabinóides [encontrados na planta] são análogos aos endocanabinóides, que nós produzimos. Muitas vezes, não produzimos a quantidade adequada e esse sistema endocanabinóide fica desregulado, desequilibrado, o que pode acarretar em uma série de doenças”, explica a Dra. Carolina.

“O sistema endocanabinóide é responsável por regular a homeostase, que nada mais é que o equilíbrio de funções básicas do organismo, como sono, apetite, humor, sistema reprodutivo e modulação da dor. Então a gente pode usar essa medicação para uma gama muito grande de doenças”, completa a dermatologista. Como o sistema endocanabinóide está presente em quase todo o corpo, muitas enfermidades e sintomas são atenuados com a reposição de canabinóides feita a partir de medicamentos à base de Cannabis.

Além dos efeitos positivos ao corpo humano, os medicamentos produzidos a partir da planta apresentam pouquíssimos efeitos colaterais e praticamente risco zero de morte por overdose, diferente de muitos medicamentos convencionais. “É um fitoterápico, tem pouco efeito colateral e não existe uma dose letal da Cannabis. Muitos medicamentos de uso controlado possuem uma janela terapêutica muito curta, ou seja, a mesma dose que trata, pode levar à morte ou à consequências graves. Com a Cannabis a gente não tem isso”, esclarece Carolina Inka.

Com isso, apesar da falta de estudos plenamente conclusivos, a Cannabis e seus derivados já têm sido prescritos como medicamentos há muitos anos em vários países do mundo, inclusive no Brasil. Entre as doenças que já possuem casos de uso de derivados da Cannabis como tratamento estão as doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, quadros de epilepsia, autismo, dores crônicas, como a fibromialgia, ansiedade, depressão, TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Além disso, é usada como auxiliar nos tratamentos de AIDS e câncer, que podem debilitar bastante o paciente, e outras tantas doenças, transtornos e síndromes que são tratadas com esta planta. Vale ressaltar que nem todos os estudos sobre o uso da Cannabis no tratamento destas doenças citadas foram finalizados, mas médicos pelo mundo seguem receitando por conta da resposta positiva de seus pacientes.

“A gente vê muito na prática mesmo a melhora, a resposta. Então, apesar de ser um uso experimental, um uso compassivo [uso de medicamento que não possui regulamentação total no país], os pacientes relatam, nos trazem esses feedbacks, que estão tendo uma melhora na qualidade de vida, estão com o controle melhor da dor”, relata Dra. Carolina. “Muitas vezes se trata apenas de qualidade de vida. Essas doenças crônicas acabam tirando muita qualidade de vida do paciente, só de devolver um pouco mais de tranquilidade, um sono e um apetite melhor, isso já traz muito conforto, não só para o paciente, mas também para os familiares que sofrem com todo esse processo”, completa.

“Quem tem dor, tem pressa”

Todas essas enfermidades citadas acima já vêm sendo tratadas com medicamentos à base de Cannabis ao redor do mundo, mas, como dito no começo do texto, o Conselho Federal de Medicina não inclui quase nenhuma delas em suas orientações aos médicos. Isso significa que os brasileiros pacientes dessas doenças não conseguem o tratamento com Cannabis? Não. Mas como esse processo funciona?

As resoluções do CFM visam regular e orientar a atividade médica no país, entretanto muitos médicos brasileiros vêm ignorando as orientações do conselho para dar o que consideram ser o melhor tratamento ao seu paciente. “A gente tem o nosso compromisso com o Conselho [CFM], mas a gente tem, sobretudo, um compromisso com o nosso paciente. Então, se a gente tem essas evidências, de estudos de fora do país, que o paciente pode ter benefícios, porque a gente não vai usar, não vai tentar?”, questiona a Dra. Carolina Inka. “Tem aquela máxima: ‘quem tem dor, tem pressa’. É muito difícil conviver com uma dor crônica, tira muita qualidade de vida, então se a gente consegue dar um pouco mais de conforto, pode oferecer uma terapia alternativa, que tem segurança, porque a gente não vai fazer?”, completa.

A dermatologista ainda conta que muito preconceito envolve a discussão sobre o fármaco no Brasil e atrasa o país quando comparado com o resto do mundo. Segundo a médica, esse preconceito ainda é notável ao analisar os artigos científicos usados para justificar a normativa publicada em 2022. “Na própria resolução, o embasamento científico mais recente é de 2014. De lá para cá, muita coisa evoluiu, muita coisa foi publicada e provada. Então é muito retrógrado e não tem embasamento científico mesmo, a gente precisa olhar para estudos mais recentes”, afirma Carolina.

Com isso, muitos médicos decidem superar esse preconceito da comunidade e prescrevem medicamentos à base de Cannabis mesmo indo contra às orientações do CFM. Carolina diz que ela e o instituto em que trabalha não iriam deixar de receitar essas medicações aos seus pacientes mesmo com a nova resolução. “Nós não iríamos deixar nossos pacientes abandonados, a gente acredita que o direito à saúde é um direito de todos e a resolução do conselho não pode passar por cima disso. Como é algo novo, é algo revolucionário também, então a gente teria que lutar”, declara a dermatologista, que também destacou a importância do posicionamento de diversos setores da sociedade brasileira contrários à nova resolução.

Agora, as esperanças da comunidade médica, pacientes e ativistas estão na consulta pública que está sendo feita até dia 23 de dezembro pelo Conselho Federal de Medicina. As respostas colhidas neste período serão analisadas e consideradas na atualização da nova resolução que entrará em vigor no lugar da de 2014. “A gente tem essa esperança de que as coisas possam melhorar, que a gente possa dar acesso ao medicamento a mais pacientes. Acreditamos também que essa consulta pública possa fazer uma pressão para que o CFM possa reconhecer essa terapia de forma mais abrangente, e até mesmo mais científica, porque a gente tá indo totalmente contrário ao que todos os outros países vêm fazendo” finalizou Carolina.