Casa de Dona Yayá, história e cultura

Preservação do casarão no centro paulistano carrega significados sobre o passado da saúde mental e seus impactos culturais

por Amanda Marangoni e José Vieira

Fotos: Emilly Gondim/JC

Construções com elementos clássicos são alguns dos aspectos percebidos durante uma caminhada pela região do Bixiga, no centro de São Paulo. Ao disputar espaço com carros e quilômetros de asfalto, os imóveis promovem um encontro entre o passado arquitetônico paulistano e a acelerada urbanização da contemporaneidade. É nesse ambiente heterogêneo que se encontra a Casa de Dona Yayá, uma visita aos anos iniciais do século 20 em meio à cidade que não para.

Ao passar pelos portões do casarão, nota-se um ambiente arborizado — um recesso de ar fresco após caminhar ao lado do intenso trânsito da capital. Com espaço para apresentações musicais e seminários assistidos pelo público, hoje o local se tornou um importante pólo de promoção cultural. Muito se difere de seu objetivo inicial, quando abrigava Sebastiana de Mello Freire. 

Apelidada de Dona Yayá, Sebastiana perdeu seus pais e quatro irmãos e se tornou a única herdeira de uma vasta fortuna. Distúrbios psiquiátricos começaram a sondar sua vida em pouco tempo. Em um período no qual os estigmas relacionados à saúde mental eram fortalecidos, Sebastiana foi incompreendida e se tornou uma mulher reclusa. Logo, a construção no Bixiga, que fazia parte de um conjunto de chácaras, se transformou em uma espécie de sanatório.

Sala de entrada com banners informativos.

Quem foi Dona Yayá?

Para entender a história da residência, é preciso conhecer a sua mais célebre moradora. Membra da aristocracia paulista, a primeira interdição de Yayá aconteceu em 1919, após uma tentativa de suicídio aos 32 anos. Inicialmente, a herdeira foi diagnosticada com paranóia, delírio sistemático agudo e psicopatia de caráter hereditário. Depois de permanecer por mais de um ano no Instituto Paulista, médicos passaram a recomendar o tratamento em casa.

Foto de Dona Yayá.

Por ser herdeira de uma importante família da elite de São Paulo, sua transferência para o casarão foi coberta por periódicos da região. O jornal O Parafuso, por exemplo, publicou uma série de denúncias abordando o estado mental de Yayá. Com um forte teor sensacionalista, a privacidade de Sebastiana foi desrespeitada e sua vulnerabilidade se tornou rentável.

Sebastiana, por muitas vezes, foi incompreendida. A aristocrata nunca manifestou nenhum interesse romântico por qualquer rapaz e permaneceu solteira por toda a vida — ela acreditava que seus pretendentes estivessem mais interessados em sua fortuna do que nela própria. Tal atitude se divergia dos costumes da época, quando a sociedade posicionava mulheres à sombra dos homens.

A instalação de Dona Yayá no casarão do Bixiga ocorreu em julho de 1920. A partir de então, manutenções se tornaram recorrentes para adaptar a moradia às suas necessidades. Apesar de estar isolada na residência e em constante vigilância, a situação de Yayá ainda era melhor do que as precárias condições dos pacientes internados em manicômios. Na ocasião, doentes mentais eram retirados de seu convívio social para se afastarem do excesso de estímulos emocionais de sua vida cotidiana. Assim, viviam com uma rotina regrada e eram sujeitos à ordem imposta pelas instituições psiquiátricas.

Segundo a professora e doutora Flávia Brito, diretora do Centro de Preservação Cultural da Universidade São Paulo (CPC-USP), o núcleo inicial da residência foi um chalé de tijolos, construído na década de 1870. Aos poucos, a construção recebeu novos cômodos e ganhou elementos provindos de uma urbanização acelerada, desde a implementação de tijolos e umbrais até a inclusão de um porão alto. “A casa é muito representativa de uma forma de viver”, diz Flávia.

De acordo com a visão de médicos e profissionais da época, banhos de sol poderiam ser positivos para a saúde mental. A predominância de cores neutras também diz respeito às condições de Sebastiana — na época, acreditava-se que o ideal era manter pessoas com distúrbios mentais distantes de quaisquer tipos de estímulos. Varandas foram implementadas para aumentar a circulação da enferma e, em anexo, foi construído um solário para estimular Yayá a aproveitar o ar livre e apreciar o jardim — o que lhe garantia o mínimo de contato com o mundo exterior.

No interior da casa, janelas foram adicionadas para que Yayá pudesse conversar com suas amigas em diferentes cômodos. Contudo, mesmo com a proposta de aliviar o cotidiano da herdeira, cuidados ainda eram tomados para a segurança de Sebastiana. Portas e janelas foram adaptadas para proporcionar controle e vigilância. Além dos vidros reforçados, as  fechaduras eram posicionadas no lado externo do ambiente, o que desconsiderava a vontade de Dona Yayá em decidir a quantidade de luz, vento e som que entraria em seus cômodos.

Porta de entrada para a casa.

Os pisos também passaram por reformulações para garantir uma maior capacidade de amortecimento. A instalação de rodapés arredondados, por exemplo, foi realizada para que Yayá não se machucasse em caso de queda ou algum outro acidente.

Restos do rodapé.

A morte de Yayá

Sebastiana de Mello Freire morreu em 1961, aos 74 anos, em função de insuficiência cardíaca durante uma cirurgia decorrente do tratamento de um câncer de útero. Em 1968, sua herança foi considerada vacante e todos os seus bens foram transferidos para a Universidade de São Paulo — incluindo a residência no Bixiga. Os outros imóveis de Yayá, espalhados em diferentes regiões da capital paulista, em Mogi das Cruzes e em Guararema, deram espaço para novos edifícios.

Flávia conta que, após a transferência da Casa de Dona Yayá para a USP, restaurações foram realizadas. “A casa estava em um estado de conservação muito ruim, então foram realizados estudos e pesquisas para que a restauração pudesse ser realizada. Foi feita uma restauração artística na sala verde através de uma prospecção arquitetônica”, explica.

Pinturas parietais na sala verde.

A professora também revela que a permanência do solário na construção foi colocada em cheque. “A restauração também é um processo de disputa. Por ter sido uma modificação, os arquitetos discutiram se deveriam manter o solário ou não”.

Em 2004, a residência se tornou sede do CPC. Apesar de seu triste passado relacionado ao adoecimento de Dona Yayá, sua construção foi ressignificada para reforçar o debate sobre saúde mental e das mulheres no Brasil. Afinal, entender Yayá é reconhecer os erros da sociedade brasileira e trabalhar para que sua memória seja honrada. “A casa tem um papel muito importante para a preservação histórica e arquitetônica no Brasil. Ela recebe um grande número de visitantes e hospeda vários eventos e palestras. É muito significativo para a identidade e preservação”, justifica Flávia.

A Casa de Dona Yayá está localizada na rua Major Diogo, 353, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Abre de domingo a sexta-feira. Clique aqui para conferir a programação completa do CPC.