A memória de Marta Erps-Breuer

Designer, estudante da Bauhaus, artista, pesquisadora e ilustradora científica são apenas algumas das facetas da alemã que trabalhou no Instituto de Biociências da USP

por Carolina Borin Garcia

Arte: Ana Júlia Maciel/JC. Fotos: Wikipédia / Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva

Nascida em 1902 na cidade de Frankfurt, na Alemanha, Magdalena Elisabeth Erps, posteriormente Marta Erps Breuer, foi aluna da Bauhaus entre 1921 e 1924, onde frequentava as oficinas de tecelagem. Em maio de 1925, Marta veio ao Brasil junto ao seu irmão Ludwig, que havia se mudado após a 1ª Guerra.  Um ano depois, ao retornar para a Alemanha, casou-se com Marcel Breuer, seu colega na Bauhaus, que viria a ser um nome conhecido no mundo do design e arquiteto da escola. 

Erich Consemüller tirou, por volta de 1927, a foto em que Marcel Breuer aparece com Marta Erps Breuer, ao seu lado, Katt Both e Ruth Hollós-Consemüller, como eles, alunas da Bauhaus
Da esquerda para direita, Marcel Breuer ao lado de Marta Erps Breuer, Katt Both e Ruth Hollós Consemüller, alunas de Marcel em Bauhaus. Foto: Reprodução/ Bauhaus-Archiv/Erich Consemüller.

Durante os anos de 1926 e 1928, iniciou-se o chamado período Dessau de Bauhaus, em que a escola é transferida de Weimar para a cidade de Dessau. Nesse momento, como apontam pesquisas da USP realizadas por Ana Julia Melo Almeida e Maria Cecilia Loschiavo dos Santos, não há registros de produções feitas por Marta Breuer na escola. Porém, formula-se a hipótese de que esse poderia ser um indicativo de que a pesquisadora pode ter circulado por outros ateliês, como os de desenho, fotografia, cerâmica, colagem e madeira da escola, o que era pouco usual para as mulheres naquele contexto, ainda que dentro do espaço da Bauhaus. Essa hipótese deriva justamente dos próprios trabalhos posteriores de Breuer, já no Brasil.

Anos depois, Marta voltou ao Brasil e Marcel Breuer foi aos Estado Unidos e o casal separou-se em seguida. Em 1932, Marta decidiu se mudar para São Paulo onde teve a possibilidade de apresentar seu trabalho e assumir o papel de desenhista e técnica de laboratório  de Biologia na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP). Três anos depois, convidado pelo professor Dreyfus, responsável pela cadeira de Biologia Geral da USP, tornou-se técnica de laboratório da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que era parte da Faculdade de Medicina da USP. 

Da esquerda para direita, na fileira inferior: Cândida de Paula Souza, Elisa Pereira Knapp, Ruth Ferri, Hampton Lawrence Carson, Lourdes Pavan, Marta Erps Breuer na Biblioteca do Departamento de Biologia Geral. Foto: Reprodução/Artigo “On Marta Breuer and some of her unpublished drawings of Drosophila spp. male terminalia (Diptera, Drosophilidae)”/C. Pavan.

Marta permaneceu vinculada aquilo que veio a se tornar o Instituto de Biociências até 1974 realizando desenhos, fotografias e esculturas. Em 1977, a pesquisadora faleceu em São Paulo e, atualmente, seu trabalho desenvolvido na Bauhaus pode ser encontrado no arquivo do museu da própria escola, o Bauhaus Archiv Museum. Parte das produções desenvolvidas no Instituto de Biociências permaneceu no Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP. 

Bauhaus e o espaço dual das mulheres

Em 2019, a Staatliche Bauhaus Weimar, mais conhecida como Bauhaus, completou cem anos de existência. Fundada por Walter Gropius, que viria a ser diretor da Escola, Bauhaus tinha como proposta uma reforma pedagógico-artística como uma ideia de arte abrangente voltada ao povo e a “construção de um futuro”, como expõe o Manifesto de 1919.

Bauhaus simbolizou um avanço no que diz respeito ao acesso das mulheres aos espaços formais de Arte e Design. Algo que ganha um sentido mais expressivo quando se pensa que Bauhaus pode ser considerada “uma das mais prestigiosas escolas de design da modernidade e que definiu preceitos que orientam diversos aspectos da nossa vida e da sociedade ocidental até hoje”, como comenta Natália Maria Gaspar, arquiteta urbanista, designer pela USP e historiadora.

Nos primeiros anos de funcionamento da escola, inclusive, havia um número maior de mulheres do que de homens. Com o passar dos anos, esse número é reduzido justamente porque, apesar do avanço, havia uma ambiguidade muito grande na inserção das mulheres nesse espaço. Ainda que existisse um número significativo de discentes, o mesmo não se repetia entre o corpo de professores. 

Fonte: Bauhaus Women: Art, Handicraft, Design de Ulrike Muller (2009)

“Ela [a Escola de Bauhaus] vendia a imagem de um pensamento aberto, de que estava dando acesso às mulheres, mas quando essas entravam, não tinham a liberdade total para seguir o caminho que quisessem”, pontua Claudia Facca. Claudia é professora doutora e coordenadora do curso de Design do Instituto Mauá de Tecnologia. 

Havia um preconceito ainda significativo, que fomentava um estereótipo de que as mulheres deveriam se restringir à bidimensionalidade e a oficinas específicas como a de tecelagem. Foi na tecelagem justamente que Marta desenvolveu parte de seu trabalho na Bauhaus. “De conhecimento público existem somente dois tapetes que ela realizou ainda como estudante da Oficina de Tecelagem, um dos quais pertencente ao acervo do MoMA, em Nova Iorque”, ressalta Natália.

No chão, tapete produzido por Marta Erps-Breuer na Exposição de Bauhaus em Weimar em 1923. Imagem: Reprodução/Bauhaus-Archiv Berlin.

Ciência e tridimensionalidade

Durante todos esses anos de trabalho, como desenhista e nas palavras do professor Carlos Vilela, “cientista”, ainda que não tenha tido uma formação em Ciência, desenvolveu ilustrações de suma importância para pesquisas da área de genética, por exemplo. Sua carreira como cientista durou em torno de 28 anos e com uma produção de 20 artigos que articulavam técnica e aspecto artístico. 

No ano de 1955, Marta ganhou uma bolsa de estudos que a permitiu viajar por Europa, Estados Unidos, Cuba, Peru, Bolívia, Chile e Argentina. Nesse momento, a pesquisadora menciona a sua preocupação com a documentação de suas pesquisas, conforme aponta pesquisa de Ana Julia Melo Almeida, sobretudo àquelas vinculadas à nova espécie de mosca que estudava, a Rhynchosciara baschanti.

Seleção de trabalhos de Marta Breuer desenvolvidos durante o seu vínculo com o Instituto de Biociências. Imagem 1 (superior à esquerda): fotografia “Barata d’água com ovos”, de 1940; imagem 2 (superior à direita): caderno com desenhos realizados a partir de fotografias ampliadas (década de 1930); imagem 3 (inferior à esquerda): caderno de estudos década de 1930, com desenhos de células e tecidos biológicos, intitulado por ela “Caderno Technica Marta Breuer”; imagem 4 (inferior à direita): escultura em madeira da espécie Drosophila melanogaster (1959). Imagem: Reprodução/Pesquisa Ana Júlia Melo Almeida – FAUUSP/Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.

O professor Vilela menciona em entrevistas que o rigor científico e técnico de Marta era um dos seus principais destaques. Além disso, o mesmo ressalta a importância da pesquisadora para o Instituto de Biociências da USP e para a ciência de modo geral. Natália Gaspar ressalta um aspecto interessante nesse momento da vida de Marta Breuer: “Em fontes primárias, Marta diz com suas palavras que desejava ser reconhecida como cientista. Ela sentia não poder ocupar um local de mais destaque porque não possuía uma formação acadêmica na área. E talvez esse fosse um dos motivos para ela não ter conseguido galgar mais degraus dentro da Universidade de São Paulo.”

Marta Erps-Breuer em coleta, durante viagem de pesquisa de campo no litoral de São Paulo. Foto: Reprodução/Pesquisa Ana Júlia Melo Almeida – FAUUSP/Acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.

Apagamento e o rememorar

a também pesquisadora Ana Mae Barbosa. Ana Barbosa é uma das pioneiras no estudo de Marta Breuer e seu trabalho, assim como o professor Carlos Vilela, que conviveu com Marta e concedeu entrevistas, além de trazer à tona o acervo do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP. Uma dessas entrevistas também foi o que incentivou Natália Gaspar a pesquisar e se aprofundar na história de Marta Breuer.

Marta Erps Breuer em 1937 com seu microscópio em laboratório do Departamento de Biologia Geral da USP. Foto: Reprodução/Artigo “On Marta Breuer and some of her unpublished drawings of Drosophila spp. male terminalia (Diptera, Drosophilidae)”, de Carlos Vilela e Antônio Cunha/M. Grellet.

Porém, apesar do tempo que permaneceu vinculada à USP e de sua contribuição em diferentes áreas do conhecimento, seu nome, sua história e seu trabalho são extremamente pouco conhecidos dentro e também fora da Universidade. “Ela tinha muitos talentos, que poderiam ter sido mais bem aproveitados e desenvolvidos, caso não existisse esse preconceito”, pontua Claudia. “Ela é conhecida muito mais por ter sido mulher do Marcel Breuer, que ele sim era famoso porque era um dos professores da escola, mas ela não ficou famosa.”

Seja por ausência ou baixa presença de políticas públicas de memória, seja pela dificuldade de documentação, seja por questões de gênero, Marta Breuer sofreu um processo de silenciamento. Natália afirma: “As mulheres da Bauhaus tiveram trajetórias maravilhosas, mulheres geniais que criaram e fizeram coisas incríveis, mas que não têm a mesma atenção que o corpo masculino daquela escola tem até hoje”. Em encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas em 2017, Ana Mae Barbosa e Claudia Facca apontam esse fato como indicativo de que “as mulheres da Bauhaus não alcançaram a mesma fama em seu tempo que os homens e, se o fizeram, a história as apagou.”

“As mulheres da Bauhaus não alcançaram a mesma fama em seu tempo que os homens e, se o fizeram, a história as apagou.”

Ana Mae Barbosa e Claudia Facca, 2017

As pesquisas no âmbito universitário também começaram a ser feitas justamente em um presente mais próximo, mas já mostram algum avanço. Pesquisadores como Ana Mae Barbosa, Claudia Facca, Carlos Vilela, Maria Cecilia Loschiavo dos Santos, Natália Gaspar, Ana Julia Melo simbolizam um ponto importante no reconhecimento na trajetória de Marta Breuer.