Das aulas vagas até à Universidade

Alunos de escolas públicas relatam dificuldade no ingresso e na adaptação à USP

por Emilly Gondim e Rebeca Fonseca

Foto: Gabriel Gama/JC

Você tem 18 anos, acordou às 5h da manhã, pegou o ônibus lotado e ficou em pé o caminho todo até chegar à escola. Por fazer isso todos os dias, o cansaço também faz parte da sua rotina. Você chegou quando o sinal estava tocando e correu para não perder a primeira aula, de português. A explicação é confusa e a monotonia faz sua atenção ficar dispersa. Nesse dia, as outras aulas seriam de história, geografia e artes, mas alguns professores faltaram e te liberaram mais cedo. Quando chegou em casa, sentiu que não aprendeu nada. Você quer ser veterinária e sabe que precisa estudar se quiser entrar naquela faculdade pública que sua mãe comentou, mas não sente vontade, tampouco tem o material necessário.

Você tem 17 anos, acordou às 7h da manhã, tomou café e foi para a escola de carro com seus pais, que trabalham em um consultório nas redondezas. Seu uniforme está perfeitamente passado, e os livros e cadernos, protegidos na mochila. No primeiro horário você estudou literatura e teve outras cinco aulas. Ao final do dia, aprendeu sobre arquitetura romântica, teorias demográficas, eletromagnetismo e a colonização da América. As aulas são tão boas que quando você chega em casa fica ansiosa para o dia seguinte. Você se sente motivada para seguir os passos de seus pais e tentar cursar veterinária na maior universidade da América Latina.

A desigualdade educacional é o que se retrata na oposição dessas situações. O preparo em uma rede pública é diferente do ofertado nas instituições privadas, o que afeta os níveis e resultados de aprendizagem de milhares de alunos brasileiros. Por terem condições díspares de acesso ao estudo e qualidade do ensino, a competição exigida deles em provas para o ingresso na universidade não é justa. As cotas são uma tentativa de reparar essa desigualdade. 

Em 2017, a USP aprovou a reserva de vagas em cursos de graduação para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas — decisão tardia se comparada às outras grandes universidades do país. Houve aumento progressivo das cotas: em 2018, 37% das vagas foram de Ação Afirmativa Escola Pública (EP); em 2021, foi 50% do total. Das vagas reservadas em todos os anos, 37,5% são destinadas aos alunos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI).

Esse sistema de cotas é válido para a entrada pela Fuvest e pelo sistema próprio criado pela universidade para substituir o Sisu, no qual a USP não ofertará mais vagas. Algumas alterações também foram feitas na forma de seleção do vestibular da USP. A partir deste ano, todos os candidatos concorrerão primeiro à modalidade ampla concorrência e os egressos de escola pública ou autodeclarados pretos, pardos e indígenas poderão concorrer também às vagas reservadas para eles.

A voz dos alunos

O JC conversou com alguns alunos cotistas para saber o que eles pensam da política e como se sentem dentro da USP. A defesa das cotas é uníssona entre os entrevistados. Hoje, Gustavo Moreira é estudante de Odontologia, mas antes era aluno na Escola Estadual Professora Nide Zaim Cardoso. Ele usou as cotas EP no vestibular da Fuvest e defende que “elas tornam mais justa a tentativa da gente, de um ensino básico precário, ter oportunidade de acessar um ensino superior gratuito e de qualidade”. 

A futura pedagoga Paloma Moreira concorda. Ela concluiu o ensino médio na Escola Técnica Jaraguá e acredita que “vestibulares promovem uma disputa desigual fundamentada num discurso meritocrático e as cotas diminuem um pouco essa discrepância”.

Denner Costa, do curso de Audiovisual, também tem o mesmo pensamento. Ele estudou na Escola Estadual Sebastião Patrus de Sousa e relata que “sem as cotas eu não teria conseguido entrar pela ampla concorrência. O meu nível de conhecimento não estava a par do que é ensinado nas escolas particulares”.

Apesar disso, os alunos criticam a disparidade entre os diferentes modelos de escolas públicas. Algumas têm mais infraestrutura e verba, como colégios militares, institutos federais e Escolas Técnicas (Etecs), o que pode resultar em maior preparo para o vestibular. “A minha escola possuía professores que incentivaram bastante o ingresso nas universidades públicas. As leituras, exercícios, discussões em sala e atividades eram voltadas para o vestibular” explicou Camila Cordeiro, ex-aluna da ETEC Jaraguá e atual estudante de Psicologia.

A realidade de Denner era diferente. O ensino de seu colégio não era suficiente e ele sentiu a necessidade de buscar ensino externo pelo projeto de cursinho popular Arcadas, oferecido pela Faculdade de Direito da USP. “O meu colégio era muito básico. Na época ofereceram um cursinho na parte da noite, mas senti que não saia do lugar, continuava sem aprofundamento. Anos depois eu encontrei o Arcadas para entrar na USP, que me ajudou a ingressar em Audiovisual” contou.

Camila pensa que “por mais que ainda seja um ensino público, os alunos de Etecs possuem privilégios e são contemplados com mais aprovações no vestibular, o que é muito bom, mas deveria ser ampliado a todo ensino público. Por isso, não acho justo que essas duas modalidades de ensino público devam concorrer no mesmo espaço enquanto houver essas diferenças”.

Realizar a matrícula na USP não é o último desafio enfrentado pelos estudantes. Camila conta que depois disso, é preciso encarar o ambiente elitista da universidade. “Ao longo do curso já presenciei olhares, falas e discursos que endossam que a maioria branca de classe alta é quem realmente vai ocupar os bons espaços na sociedade”.

A política de cotas tem efeito positivo no ingresso desse público à universidade, mas os alunos acreditam que o ambiente acadêmico ainda não está preparado para recebê-los. “Para jovens como eu, que trabalham e conciliam os estudos, é difícil a permanência neste espaço elitista que é a USP. Sinto que, inclusive pelas demandas solicitadas pelos docentes, somos constantemente convidados a desistir”, lamenta Paloma.