Paulo Calçade: “A gente deveria refundar o futebol brasileiro”

Comentarista esportivo dá opiniões sobre a eliminação brasileira da Copa do Mundo e o que mais marcou o torneio do Catar

Arte: Ana Júlia Maciel/JC

por Antônio Misquey

Quatro minutos. Duas palavras que se tornaram cruéis na vida de milhões de brasileiros. A derrota para a Croácia nos pênaltis, no dia 9, colocou ponto final na campanha do hexacampeonato mundial. Eram sete jogadores de amarelo no campo ofensivo em um segundo tempo de prorrogação, com o placar a favor. Os europeus responderam ao deslize com um contra-ataque fulminante e um chute de Petkovic da entrada da área, que matou o goleiro Alisson e o sonho de um país.

O lance é o resumo de mais uma eliminação melancólica, a quinta consecutiva para europeus em Copas do Mundo. Mas a explicação vai além. O JC conversou com Paulo Calçade, comentarista esportivo dos canais Disney e professor-convidado da Escola de Educação Física e Esporte da USP por dez anos, para entender o panorama do Brasil frente ao mundo e se o privilégio de ser o país do futebol está chegando ao fim.

Para Calçade, a eliminação nas quartas-de-final, no Catar, vai muito além do lance do gol de empate croata: “A Croácia olhou para o Brasil e moldou sua escalação para enfrentar. E se deu bem. O Brasil demorou muito a romper isso, passou todo um primeiro tempo tentando imaginar o que poderia ser feito. Nós erramos nesse aspecto tático de tentar minimizar a força croata e jogar futebol”.

A grande força croata, segundo o jornalista, foi a superioridade numérica obtida no setor do meio-campo. O trio Luka Modrić, Marcelo Brozović e Mateo Kovačić se somou a Mario Pašalić, titular pela primeira vez no Mundial, e Andrej Kramarić, centroavante que recuava no campo para congestionar a criatividade brasileira. Sérvia e Suíça, ele completa, também se adaptaram taticamente para enfrentar o Brasil.

Seleção croata recebendo a medalha de bronze na Copa do Mundo do Catar. Foto: Reprodução/Instagram

Em 2026, ano da próxima edição da competição, serão 24 anos de jejum da seleção brasileira em Copas do Mundo, igualando a maior seca da história, entre 1970 e 1994. Calçade alerta sobre a situação preocupante: “Nós não estamos mais no momento do futebol mundial em que a arte de jogar é de alguns poucos. Hoje, o futebol é muito bem jogado em todas as partes do mundo”, diz. 

“A gente deveria refundar o futebol brasileiro, no sentido de uma busca incessante para melhorar a base, o nosso campeonato, a formação de jogadores, uma série de aspectos que ainda são deficientes”.

Paulo Calçade

O comentarista aponta que uma reforma não é sinônimo da retomada do caminho do título, mas uma urgência para não ficar para trás de vez.

A missão de reerguer o Brasil no cenário do futebol mundial não caberá mais a Tite. O técnico deixou o cargo após seis anos e a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) está no mercado para substituí-lo. O nome da vez é o italiano Carlo Ancelotti, do Real Madrid, multicampeão que treina brasileiros como Vinícius Júnior, Éder Militão e Rodrygo. Calçade concorda que a escolha de um estrangeiro, como Abel Ferreira, do Palmeiras, é a melhor decisão a ser tomada.

“Não vejo, no Brasil, ninguém capaz de fazer um trabalho superior ao do Tite”.

Paulo Calçade

Ele também avaliou o trabalho do ex-comandante: “Só pelo resultado, não atingiu o objetivo. Agora, por tudo que foi feito, a Seleção Brasileira termina esse período totalmente organizada. O ponto de partida para o próximo trabalho não será muito diferente quando vier um novo treinador”.

O técnico Tite desembarcando em Turim, na Itália, onde a Seleção Brasileira fez sua preparação para o Mundial. Foto: Reprodução/Instagram

A Copa do Catar foi muito além da vitória croata. Outros resultados improváveis também tiveram grande protagonismo: Marrocos desbancando Bélgica, Espanha e Portugal até a semifinal da Copa, Arábia Saudita batendo a campeã Argentina logo na estreia, Japão liderando um grupo com Espanha e Alemanha, entre outros episódios estranhos. Calçade, porém, evita classificá-los como “zebras”.

Para o jornalista, o grande legado do evento foi mostrar que o futebol é acessível em várias partes do planeta. Países cada vez mais exportam seus jogadores para ligas mais desenvolvidas e, dessa forma, o grande nível de atuação é consequência. Ele completa que a visão comum brasileira, de deter a arte do bom futebol enquanto ninguém mais a possui, é uma grande “bobagem”.

A grande história do torneio, porém, foi a coroação da carreira de um dos maiores craques da história do esporte. Lionel Messi liderou a seleção argentina ao tricampeonato mundial e foi eleito o craque do campeonato, com dez participações em gols em sete jogos. A comparação que já era inevitável com Diego Maradona, campeão mundial em 1986, agora ganhou um novo enredo. Calçade reafirma o marco histórico de ambos os craques.

“O Maradona é o maior jogador de futebol da história da Argentina e o Messi é o melhor jogador de futebol da história da Argentina. Pela longevidade que o Messi joga bem, encantando, produzindo vitórias, isso é um absurdo”, diz Calçade.

“Jamais o Messi será um personagem da dimensão do Maradona, porque o Maradona tem duas dimensões: de dentro do campo e de fora”.

Paulo Calçade
Lionel Messi levantando a taça de campeão mundial com a seleção argentina. Foto: Reprodução/Instagram

Outra história do Catar foi a escolha do país como sede do torneio. O jornal britânico The Guardian divulgou, em fevereiro de 2021, uma investigação que revelava a morte de cerca de 6,5 mil trabalhadores desde o início das obras dos estádios da competição. Em entrevista ao canal britânico TalkTV, durante o evento, um integrante do governo do país admitiu que houve mortes, mas disse que o número de vidas perdidas está “entre 400 e 500”.

Além disso, a legislação catari reprime os direitos de mulheres, que não podem se recusar a fazer sexo com seus maridos; e de pessoas LGBTQIA+, que podem ser presas por até três anos pela identidade sexual. Calçade, que sempre se colocou contra à escolha do Catar como país-sede, falou sobre o seu sentimento. “A Copa vai para onde tem dinheiro, ela não se importa com os direitos humanos. Eu sou totalmente contrário a isso”.

“O Mundial é uma grande festa da humanidade e deveria ser recebido por países que respeitam os direitos humanos. Nesse caso, eu não teria feito o Mundial no Brasil, na Rússia e no Catar”.

Paulo Calçade

A próxima edição da Copa do Mundo será disputada no Canadá, Estados Unidos e México, em 2026. Os três países norte-americanos estão melhor colocados do que os citados por Calçade no ranking de liberdades humanas, do Instituto Cato, de 2018.

O próximo evento também será inédito em seu formato, com 48 seleções, 16 a mais que o modelo atual. A grande dúvida sobre a mudança, segundo o comentarista, é o sistema de disputa do novo Mundial. “Como é que a gente vai desenvolver uma estrutura para abrigar tantas seleções? A grande preocupação é montar algo que seja atraente e não atrapalhe o calendário do futebol mundial”.

Taça da Copa do Mundo de 2022. Foto: Reprodução/Instagram

Em 2017, a FIFA anunciou que a competição seria disputada com 16 grupos com três seleções cada, mas a decisão ainda não foi oficializada. O presidente da entidade, Gianni Infantino, declarou recentemente que o sucesso do formato do Catar, em que nenhuma das equipes dos oito grupos conseguiu sair com 100% de aproveitamento, gerou dúvida em relação à proposta antiga. Novas reuniões serão realizadas antes do martelo ser batido.

Calçade lembra de outra derrota sofrida no Catar. “O jornalismo profissional, nessa Copa, levou um grande tombo”. Ele faz referência às raras escolhas de profissionais capacitados no momento de analisar as partidas, principalmente na mídia televisiva. O jornalista encerra a entrevista com sua sincera opinião sobre o domínio do entretenimento, bem acima da informação:

“Eu acho isso muito pobre, mas foi a tônica desse Mundial”.

Paulo Calçade