A política do corpo na casa Maria Antônia

Filme “Êxtase” é transmitido de graça na USP e levanta questões inéditas sobre a anorexia de uma maneira crítica e sensível

Por Valentina M. Cândido e Lucas T. Dias

Foto: Laura Guedes

A política é, em última instância, o ato de conviver com o diferente. É o espaço onde se é obrigado a lidar com o próximo, naquilo que ele deseja e que é oposto ao meu desejo. Construir a partir da política passa por aceitar o diferente e acolhê-lo como parte essencial da vida em uma sociedade que se propõe democrática. Por essa razão, não existe política onde não há conflito.

Do lado oposto à política, existe a uniformidade, a concordância permanente. Um espaço onde não há conflito na medida que os desejos não se opõem, mas são controlados e direcionados no mesmo sentido. Em sociedade, a uniformidade levada ao extremo é o que se conhece como Estado totalitário, onde todos querem o mesmo e todos são iguais.

Mas e quando voltamos essa discussão para nós mesmos? Em que medida controlar a si, querer eliminar os próprios conflitos internos, não é também uma tentativa de apagar o Outro? A partir destas questões, o filme “Êxtase”, de Moara Passoni, posiciona a anorexia em um campo para muito além do senso comum. A doença no filme não é somente um distúrbio de uma jovem que se vê gorda, feia ou inadequada, mas sim uma ruptura política e existencial; uma tentativa desesperada pela liberdade, nem que seja através da destruição.

Foto: Laura Guedes

Ambientado em Brasília, as cenas são filmadas nos seus prédios de concreto “ossado”, em salas de linhas rígidas, frias e esquadradas. As cores pouco destoam de um branco, cinza ou bege, no máximo tons pastéis, desbotados. É quase como se a tela fosse ar, de cor translúcida, como se não existisse. A filmagem é aérea, desconectada, como se a câmera somente flutuasse no mundo. A sonografia é sensível ao mesmo tempo que inquietante. Com essa sutileza e intimidade, Moara traduz para o público o que é se relacionar com um corpo anoréxico, e como ele, por sua vez, se relaciona com o mundo.

A obra parte de uma autobiografia, pois a diretora passou pela experiência em sua adolescência, mas é também sua intenção ‘implodir’ o autobiográfico. Ao longo do trabalho, Moara percebe “o quanto disso não era só a minha experiência, mas podia comunicar com outros universos. O que aparentemente é tão privado se cruza com as experiências de outras mulheres”. Para tanto, o roteiro costura relatos de diários de diversas mulheres, buscando perpassar o que há de sutilmente comum na experiência desta doença.

E essas diversas histórias fundem-se para tomar forma em Clara, a protagonista do filme, que dos sete aos dezessete anos passa pelo processo de cair, afundar-se e emergir da anorexia. Durante esse tempo, ela busca controlar a única coisa que acredita conseguir: o corpo. De forma quase paradoxal, se torna refém de sua própria busca pela libertação.

A Liberdade e o Desejo

Foto: Filme Êxtase

O controle externo está posto nas mais diversas situações. A visão comum sobre a anorexia – a qual Moara deseja superar, complexificar – seria de que essa doença é uma sujeição ao controle do padrão de beleza. Mas, considerando sua própria experiência e a de muitas outras mulheres, a diretora quis aprofundar essa abordagem. A anorexia se torna, então, uma forma de um estado totalitário ao mesmo tempo que de uma resistência.

Com “resistência”, Moara não quer glorificar o distúrbio, mas sim demonstrar que a busca desesperada pelo controle de si parte de um deslocamento: é uma busca pela liberdade a partir da tirania. Nas palavras da diretora, “a anorexia é uma forma de tentar controlar o corpo, dizendo para o mundo que vocês não vão me controlar mais do que eu sou capaz de me controlar”. Dessa maneira, o impulso de liberdade que é assumir o próprio desejo é sufocado para dar espaço para uma liberdade de uma autodeterminação.

O filme mergulha nessa liberdade para revelar a sua incompletude, seu caráter ilusório. Ela é atrativa mas não pode ser a nossa escolha, pois esta deve ser por uma liberdade que passe pelo limite do outro, pela ideia que o corpo e o desejo não são controláveis. Segundo Moara, “ao fazer esse gesto de libertação do mundo que é invasivo, que te regula, te prediz como você deve ser, ela erra ao achar que é possível se isolar do mundo, que é possível não viver essa dimensão política do corpo inserido no mundo”

Assim como a protagonista vive o êxtase e escolhe pelo conflito no fim do filme, quando ela passa a superar a anorexia ou, nas palavras da narração, “quando o corpo vence ela”, é necessário escolher pela política, pelo diferente. Como expressado por Maurício Ayer, diretor de sonografia, “é preciso reencontrar esse lugar de desejo, pois habitar o mundo é o inverso de anular o próprio desejo. A política convive no diferente, nessa alteridade, no conflito com o Outro. É um estrangeiro que sou eu: o corpo e o desejo não são controláveis. É preciso pensar em uma liberdade que passe por isso”.