Na Psicologia, projetos voluntários oferecem auxílio contra surto global de transtornos mentais

Iniciativas do IP-USP vão do apoio de curta a longa duração para enfrentar distúrbios que hoje atingem quase 1 bilhão de pessoas no planeta

por Fernando Cardoso

Foto: Diogo Leite/JC.

Os três anos de pandemia da Covid-19 deixaram consequências evidentes em todo o mundo. Dados da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, mostram que mais de 680 milhões de casos globais de contaminação pelo coronavírus foram registrados  até hoje, o que levou à morte de quase 7 milhões de pessoas. 

Após a difusão da vacinação, no entanto, problemas novos e pouco divulgados anteriormente vieram à tona, tornando-se um verdadeiro desafio ao retorno da normalidade pós-Covid. O principal deles está relacionado à ampliação de distúrbios mentais. De acordo com números da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ansiedade e a depressão avançaram 25% só em 2020, no primeiro ano da pandemia.

Condições pandêmicas determinantes para o aumento de transtornos mentais, como ansiedade social, luto, medo do contágio e instabilidade no trabalho, deixaram cerca de 1 bilhão de pessoas em necessidade de cuidados psicológicos no ano passado, informou a OMS, com muitos países não oferecendo ainda os tratamentos necessários, sejam medicamentos ou acesso a especialistas.

Com a união do aumento da demanda de indivíduos em condições financeiras instáveis e a priorização de investimentos na linha de frente do combate ao vírus, governos e instituições privadas têm falhado em responder ao desafio da saúde mental. Cada vez mais tem sido essencial a mobilização de iniciativas voluntárias da sociedade civil na resposta à crise que ameaça se tornar a nova pandemia dos próximos anos. A Universidade de São Paulo (USP) faz parte desse esforço.

“Durante a pandemia, a gente recebia muitos alunos. Esse ano são mais pessoas que nem da USP são. É uma demanda bastante diversificada”, conta Laiz Chohfi, supervisora do Plantão de Acolhimento Psicológico (PAP). O serviço do Instituto de Psicologia (IP-USP) é voltado para receber pessoas da comunidade uspiana ou externa que precisem de “uma ou duas conversas”, na definição de Chohfi, para resolver questões e problemas mentais surgidos durante a pandemia.

O PAP tem suas raízes em um programa do IP que já existia anteriormente, mas que ganhou nova face com as necessidades surgidas durante a fase de isolamento. A principal foi a criação de um apoio psicológico online. Nesse modelo, alunos de graduação e pós-graduação do instituto atendem a qualquer pessoa que deseje tratar de alguma questão que gere incômodo.

“A gente vê um atravessamento da pandemia por conta dos anos de reclusão e isolamento. A pessoa ficou isolada e agora está tentando se adaptar e voltar a encontrar outras pessoas”, explica Chohfi.

A professora esclarece que os números crescentes de indivíduos com transtornos nem sempre são sinais da necessidade de um acompanhamento de longo prazo, como ocorre na psicoterapia. No PAP, muitas vezes uma conversa basta para que as questões de uma pessoa sejam resolvidas. Ela conta que existem pessoas que já conseguem resolver suas questões em uma conversa. No caso do entendimento de que é preciso um acompanhamento mais longo, o PAP encaminha as pessoas para outros serviços do Instituto que possam fornecer o tratamento necessário.

Além do atendimento na forma de plantão, o IP também oferece outros serviços com diferentes abordagens e objetivos para cada paciente. O projeto Apoiar, por exemplo, oferece desde 2002 ajuda a jovens, especialmente em condições de vulnerabilidade social, com o foco em indivíduos que sofrem de questões psicossomáticas, quando o transtorno mental se desenvolve em uma dor física.

Há outros programas que trabalham com uma condução coletiva das atividades, em que vários participantes se juntam para discutir suas questões. O projeto Sonhar-se foi criado para permitir uma oportunidade para pessoas compartilharem seus próprios sonhos umas com as outras e tentar entender o significado por trás de cada um deles.

Mesmo assim, a alta demanda por cuidado psicológico refletida em números de organizações internacionais pouco fez para alterar a percepção sobre a importância da saúde mental. Frequentemente, o problema está na divulgação de serviços já existentes.

“Em um mundo ideal, as pessoas entenderiam que questões psicológicas são importantes e são dignas de cuidado. Tem relação com a divulgação e o amplo acesso ao cuidado psicológico”, afirma Chohfi.

Nesse sentido, a USP realizou entre os dias 15 e 19 de maio a 1ª Semana da Saúde Mental, que coincide com o calendário nacional de celebração e luta em defesa da política de saúde mental brasileira. Organizadas pela Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, as palestras e encontros culturais buscaram discutir questões como o crescente problema dos transtornos mentais na sociedade e o papel que a pandemia teve para o agravamento deste cenário.

O evento, inédito na Universidade, trouxe importantes contribuições para o entendimento da saúde mental. Mas a demora para a ocorrência de uma cerimônia do tipo mostra como a questão foi por muito tempo um tabu, cuja quebra foi catalisada pelos problemas surgidos nas situações adversas da pandemia da Covid-19.

“Ainda que estejamos comemorando o fim da emergência sanitária da pandemia, temos um entendimento de que as ressonâncias dessa experiência permanecem presentes na nossa vida, com todas as transformações”, disse Ricardo Teixeira, professor e coordenador da área de saúde mental na Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, em uma das palestras do evento.

O professor descreve o momento atual como uma fase de “escuta”, sendo necessário compreender primeiramente as questões emergenciais que cada indivíduo acumulou ao longo dos anos de pandemia.

“Temos a coragem de dizer que nesse momento que não sabemos que objeto é a saúde mental”, explica Teixeira. “É uma inflação discursiva da saúde mental, que se tornou simplesmente uma linguagem para a gente falar do sofrimento”.