“A escola não é o alvo da violência, e sim os indivíduos que estão lá”

Para especialistas em autorradicalização online, ambientes digitais favorecem disseminação de ódio às comunidades onde vivem os adolescentes

por Mavi Faria

No processo de radicalização online, os indivíduos pertencentes às comunidades em que os jovens radicalizados vivem tornam-se alvos; os da escola são um exemplo. Foto: Gabriele Koga/JC.

Misantropia: ódio pela humanidade; falta de sociabilidade. A definição do dicionário, apesar de simples, abrange um sentimento que tem motivado a maioria dos ataques contra outra pessoa, como pontua a pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP, Michele Prado. Ela leva em consideração o cenário atual, em especial no âmbito escolar.

A discussão estourou após o atentado que levou à morte de uma professora e quatro feridos na Vila Sônia, São Paulo, no dia 27 de março. O caso foi cometido por um aluno de 13 anos que portava uma faca.

Nove dias depois, um novo atentado, em Blumenau, Santa Catarina, em uma creche. Um homem de 25 anos causou a morte de quatro crianças e deixou cinco feridas. As reações que se seguiram aos dois atentados foram ampliadas pelo medo de uma nova onda de violência no dia 20 de abril, em que o massacre de Columbine, nos Estados Unidos, completaria 24 anos. 

Embora esteja sendo o foco da discussão, Michele explica que “escola não é o alvo da violência, e sim os indivíduos que estão lá. As primeiras relações de comunidade que os jovens possuem são na família e na escola, então aqueles que formam esta comunidade entram na mira”. Por isso, nada impede que o foco recaia sobre outros coletivos pelos quais crianças e adolescentes circulam, como grupos religiosos ou esportivos. 

Para a pesquisadora, a misantropia, apesar de resumir e caracterizar o cerne da motivação, não é o único fator. Sozinha, não consegue explicar uma situação complexa e nova no país. A palavra para o que vem acontecendo com eles é a autorradicalização online, que leva o indivíduo ao extremismo, processo que vem sendo monitorado por Michele desde 2021 em plataformas digitais. 

“Há, entre crianças e adolescentes que se auto-radicalizam pela internet, desde aqueles com uma misantropia, que é a principal característica entre os extremistas de hoje, até aqueles que a juntam ao antissemitismo, à extrema direita ideológica, ao neonazismo, ao neofascismo e ao negacionismo”, pontua. 

Por isso, Michele ecoa outros especialistas a comparar o extremismo dos dias de hoje a um buffet de saladas: “o jovem, nas redes, é exposto a uma gama de conteúdos diversos, tanto ideológicos, inspiracionais, quanto instrucionais de como efetivamente produzir um atentado. Eles vão se aliando ao que se sentem relacionados e à medida que suas queixas, como bullying, violência doméstica e rejeição feminina, são atendidas”. 

Exemplo prático: o jovem de 18 anos que invadiu sua ex-escola no ano passado, em Vitória, portando uma balestra, facas e coquetéis molotov, o de Aracruz, de 16 anos, também no Espírito Santo, que causou quatro mortes com arma de fogo e o do Amazonas, que deixou três feridos por arma branca, estavam conversando entre si já e com aderência ao neonazismo. 

O processo de radicalização funciona de forma única para cada indivíduo e, à medida que consomem esses conteúdos, perdem a sensibilidade perante a violência. Michele diz que é comum, nessas plataformas, o culto a cenas de violência explícitas, envolvendo automutilação e decapitação, por exemplo.

Mas o desenvolvimento da radicalização até o ato da violência é longo e raro, explica a pesquisadora. “Uma minoria de pessoas chega a cometer um atentado. A maioria passa anos sendo radicalizada e nunca comete o ato de extremismo violento”. Ainda assim, ela não deixa de ressaltar a existência do efeito bocejo, ou efeito contágio: “Após um ataque, existe um período curto de uns 10 dias em que há um alto potencial de que alguma outra pessoa imite o ataque; ele é contagiado a fazer também, como um gatilho”, explica. O ataque de Blumenau, por exemplo, para a pesquisadora, foi incentivado pelo efeito contágio do de São Paulo.

Independente disso, ressaltar como a escola ainda é uma comunidade segura é um ponto fundamental no debate, afirma Veridiana Campos pesquisadora do Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas (PODHE) do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. “Temos milhares de escolas no Brasil; aconteceu esse fato em uma aqui e outra ali. Mas precisamos lembrar que, em termos práticos, o número de escolas que ocorreu ou que eventualmente vai haver uma coisa dessa vai ser muito baixo”, pontua.

Essa linha de raciocínio, para Veridiana, é necessária tanto para as escolas, quanto para os pais, para que não deixem se levar pelo medo. Em 20 de abril, por exemplo, embora Michele tenha confirmado por meio de evidências nos canais extremistas a intenção de um massacre, as redes foram tomadas por notícias falsas que produziram o caos. Essa técnica de confundir as pessoas e as autoridades com alertas falsos é operada por esses jovens.

O movimento de combate e prevenção da radicalização online é lento, mas, para Veridiana, a discussão é um começo essencial. Principalmente porque, como Michele lembra, a violência não é a única consequência. “Tem muito adolescente com transtorno alimentar, idealização suicida, transtorno de personalidade e outras questões que ou surgiram, ou pioraram com a radicalização”. 

A ainda escassa rede de pesquisas nacionais sobre o tema não deve ser um empecilho para encontrar uma solução. Michele, em contato com pesquisadores internacionais, compartilhou com o Jornal do Campus um guia feito pela Southern Poverty Law Center para pais e professores sobre a radicalização online. Você pode conferir o documento completo aqui.