Subsolo

por Damaris Lopes

Cama, guarda-roupa, escrivaninha, geladeira, fogão, duas janelas e banheiro. Tudo isso compactado em cerca de 25 metros quadrados de uma quitinete em São Paulo. No anúncio, a locadora enfatizava: “imóvel ideal para estudantes da USP”. Isso porque ele está localizado na Vila Indiana, uma região ao lado de um dos portões de acesso à Universidade de São Paulo. Esse seria o destino de Guilherme: jovem negro, ex-estudante de escola pública que percorreu mais de 3 mil quilômetros ao deixar Paço do Lumiar, cidadezinha no Maranhão, para chegar à capital do estado de São Paulo. 

Gui, como é chamado pelos amigos, poderá  ser o primeiro de sua casa a ter um diploma de nível superior – em uma excelente universidade, por sinal. Além disso, onde morava sabia que o destino não lhe reservava grandes oportunidades. Sua família vivia com um salário mínimo, assim como muitos moradores do Maranhão, estado em que os habitantes têm a menor renda média mensal do Brasil. Então, no dia 26 de janeiro de 2022, quando chegou à maior metrópole do país, seus olhos deslumbravam a imensidão de uma cidade com mais de 12 milhões de habitantes. Esses mesmos olhos que jamais tinham visto outro estado brasileiro, olhos acostumados a observar uma vida pacata em uma cidade com menos de 150 mil pessoas.

Guilherme não se desesperou com tantos estímulos visuais e sonoros. Ele já havia planejado sua chegada e sabia exatamente para onde ir ao desembarcar em São Paulo: a quitinete na Vila Indiana. Para ele, que vinha com apenas duas malas, o lugar seria ideal, pois, como dizia no anúncio, era todo mobiliado e feito para alunos da USP, assim como ele, que ingressou em 2021, mas que pelas restrições da pandemia só começaria as aulas presenciais no ano seguinte. O local já estava garantido após pagar o primeiro aluguel no valor de 870 reais, dinheiro que iria retirar mensalmente de sua bolsa de estágio e do auxílio permanência. O valor do aluguel era mais que o dobro do que sua família pagava de financiamento na casa em que eles viviam no Maranhão.

“Seja bem vindo, Gui”, recepcionou a proprietária ao abrir o portão do casarão das quitinetes. Ela falava como estava feliz em recepcioná-lo, que assim como ele muitas pessoas que moravam ali tinham vindo de longe para estudar na USP. Novamente, os olhos de Guilherme se enchiam de empolgação, agora ele moraria sozinho e teria sua própria casinha. A empolgação aumentou ao pisar pela primeira vez no local – o sol brilhava e aquecia a garagem e as plantas encostadas no muro. Aquele sol, aquelas plantas e aquele sorriso da mulher lembravam sua casa no Maranhão. “Aqui em cima só temos umas 4 quitinetes, a sua fica um pouco ali para baixo”, explicou a mulher.

Conforme desciam  um, dois, três, quatro lances de escadas, o calor nas paredes iluminadas pelo sol foi ficando para trás. “É aqui a sua, Gui. Como eu te mostrei nas fotos do anúncio: cama, guarda roupa, escrivaninha, geladeira, fogão, duas janelas e banheiro, tudo no jeito para você, fique a vontade, toma a sua chave, qualquer coisa você tem meu WhatsApp”. O que o anúncio não contava é que as duas janelas não davam para lugar nenhum. Ao abri-las, o que se via era a parede do subsolo. Sem ventilação, sem sol, com cheiro de mofo e, de brinde um quarto vizinho repleto entulhos ao lado. Essas informações  não foram explicitadas no anúncio, mas chamaram a atenção de Guilherme logo no primeiro momento.

 Outra informação que o jovem universitário não sabia era que Vila Indiana está localizada na Zona Oeste de São Paulo, na qual estão os imóveis mais valorizados da cidade. O bairro de Pinheiros, vizinho de onde Guilherme estava morando, possui o metro quadrado mais caro da capital, custando mais de 11 mil reais. Além disso, moradias próximas a estações da linha Amarela do metrô são, em média, 4% mais caras do que aquelas mais distantes dos trilhos e a kitnet de Gui era justamente perto da estação Butantã, a mais movimentada da região pelos estudantes da USP. Outro agravante é a própria Universidade de São Paulo, pois a demanda por kitnets, studios e apartamentos é alta, principalmente no começo do ano quando chegam os novos alunos. E se a demanda é alta os proprietários sabem que podem cobrar valores altos por espaços minúsculos e muitas vezes degradantes, como era o imóvel do Gui. 

Definitivamente, aquele lugar não tinha um ar de casinha, de recomeço, mas sim de enclausuramento. Os olhos cheios de esperança, agora, estavam cheios de tristeza. No dia 14 de março de 2022, quando as aulas voltaram, Guilherme não sentiu a empolgação de viver a Universidade de São Paulo, pois a preocupação com o lugar que morava, o alto custo de vida na capital e o desamparo financeiro por saber que sua família não poderia ajudá-lo tomavam conta de sua mente. A política de cotas na USP permitia que um jovem negro e nordestino adentrasse aos portões que majoritariamente eram acessados pela elite paulista, mas naquele momento Gui percebeu que responder às questões do vestibular não havia sido a etapa mais díficil. Complicado mesmo seria permanecer ali.

A situação ainda se agravou quando os constantes problemas de saúde começaram a abatê-lo. A falta de ventilação e o mofo que tomava conta das paredes do subsolo trouxeram recorrentes problemas respiratórios. Mais uma vez o alto custo de morar na Zona Oeste de São Paulo o afetava, o preço dos medicamentos impossibilitava que ele pudesse fazer o tratamento como indicado pelo médico, por isso o ciclo de enfermidades parecia não acabar. Os problemas físicos também atingiram o lado psicológico. Depressão e ansiedade também passaram a habitar nos 25 metros quadrados da quitinete. “Preciso me mudar daqui”, concluiu Guilherme após 3 meses vivendo em um imóvel que mais parecia um cativeiro.

No fim do primeiro semestre de 2022, Gui começou a buscar incessantemente por uma nova moradia. Os problemas de saúde persistiam, o desânimo pela vida degradante continuava coabitando dentro de sua mente. Mas, o desejo de permanecer e lutar pelo seu sonho fizeram com que ele conseguisse encontrar um lugar quase inexistente na região mais cara de São Paulo: um quarto mobiliado dentro de uma casa por um valor menor que seu aluguel. Dessa vez, conferiu que as janelas garantissem alguma ventilação e que o sol aquecesse o local. Tudo certo. Agora, em vez de descer, Gui precisa subir alguns lances de escada para chegar ao seu quartinho. Chega de morar no subsolo da cidade de São Paulo.