Único no país, curso de Obstetrícia na USP tem estágios ameaçados

Bacharelado pioneiro e ligado à saúde da mulher sofre com escassez de docentes, supervisão e aulas práticas 

por Beatriz Ferreira e Guilherme Bento

Protestos em frente ao prédio da reitoria, no Campus Butantã. Foto: Fernanda Real

O início do ano foi marcado por lutas para o curso de bacharelado em Obstetrícia, localizado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. A falta de professores e o seu impacto nos estágios obrigatórios marcaram, já em 23 de março, uma mobilização do corpo discente em frente à reitoria. 

O curso tem histórico de falta de um corpo docente que atenda à demanda, conforme relata Eduarda Rodrigues, estudante e membro da representação discente de Obstetrícia. Os estudantes iniciaram os estudos em 2023 sem a certeza de realizar seus estágios no segundo semestre, após a saída de professores temporários.

O bacharelado oferece, a partir do sexto semestre, quatro estágios obrigatórios no campo prático. O problema é que eles demandam supervisão direta de docentes com formação acadêmica específica em Enfermagem ou Obstetrícia, – exigência do Conselho Profissional de Enfermagem para a prática clínica – , disse a Coordenação do Curso de Obstetrícia em nota ao JC. 

Além disso, os Hospitais Públicos e Unidades Básicas de Saúde (UBS) utilizados como campo de estágio aceitam grupos de cinco a oito alunos por estágio. De acordo com a coordenação do curso, duas turmas de 60 alunos realizam o estágio a cada semestre sendo, então, necessários até 24 professores para o acompanhamento dos estudantes. 

Até dezembro de 2022, o curso contava com 12 docentes neste eixo específico. Cada um cumpriu em média 16 horas semanais de supervisão de estágio, somadas à carga horária de aulas teóricas e às atividades de pesquisa e extensão. Havia, ainda, oito docentes temporários. Com a não prorrogação dos contratos de temporários para 2023 e a aposentadoria de dois docentes, o curso iniciou o primeiro semestre deste ano com apenas dez professores. Eles cumprem até 24 horas semanais entre a supervisão obrigatória dos estágios e a teoria de diversas disciplinas, além de atividades de pesquisa e extensão previstas na carreira docente da USP.

Impactos se estendem à grade curricular, que oferece menos aulas práticas aos estudantes na rede pública de saúde. O período ideal do curso também foi alterado: aumentou de quatro anos e meio para cinco e meio devido à paralisação dos estágios na pandemia e a falta de professores para tirar o atraso, completa Eduarda.

Demanda por melhorias é recorrente na EACH. Foto: Gabriele Koga/JC

Uma questão de saúde da mulher 

A USP é a única faculdade a oferecer o curso de Obstetrícia, que forma a obstetriz, profissional capacitada para realizar, de maneira humanizada, o parto normal de baixo risco e o acompanhamento pré-natal. Já o enfermeiro obstetra faz graduação em Enfermagem e pós-graduação em Obstetrícia e pode atuar na pediatria, UBS e UTI. O obstetra é o médico que faz residência em Ginecologia e Obstetrícia e pode ainda realizar partos cesárea e fórceps.

A obstetrícia e a saúde da mulher estão ligadas não somente durante o parto, mas durante toda a vida do bebê e da mãe. As decisões tomadas antes, durante e depois de auxiliar uma mulher a dar a luz afetam a saúde de ambos, afirma Nathália Martins de Faria, enfermeira obstetra pela Faculdade Albert Einstein, que atende partos hospitalares de forma autônoma há 4 anos. 

O obstetriz é necessário durante toda a condução da gestação e pós parto; para a avaliação de exames, classificação de risco habitual ou alto risco e condutas obstétricas adequadas e respeitosas, por exemplo. 

Acontece que, segundo Nathália, uma grande parte dos profissionais ainda tem condutas obstétricas defasadas, acreditam e praticam episiotomia, – corte entre a região da vagina e ânus que durante o parto facilita a saída do bebê, mas que pode acarretar em infecções, dores durante a relação sexual e incontinência urinária e fecal-, e outros métodos que prejudicam os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. 

As principais causas da negligência e engano vêm do despreparo dos profissionais da área em sua formação. “O que eu tenho observado é que as obstetrizes, por serem voltadas à saúde da mulher e seus direitos reprodutivos e sexuais, realmente tem uma atenção muito mais qualitativa de condutas obstétricas, enquanto que o enfermeiro que vem de uma  formação diferente, traz consigo uma formação e pensamento mais hospitalocêntrico e vai interferir mais do que uma obstetriz”, relata a enfermeira obstétrica.

É por esse motivo que Nathália diz ainda se preocupar com a situação do curso de Obstetrícia da USP. A falta de profissionais capacitados para partos que valorizem a saúde da mulher e do recém-nascido é alarmante em um país onde o atendimento obstétrico já é violento, o que pode ser observado através da posição mundial de realização de cesáreas do Brasil: a segunda, perdendo apenas para a República Dominicana, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde realizada pelo IBGE entre julho de 2017 e julho de 2019. “Não existe um embasamento robusto para a quantidade de cesarianas, então o que explica é medo profissional e despreparo”.