Indústria do entretenimento lucra com a propagação de conteúdos misóginos na internet; para especialista da USP, há movimento mundial de incitação ao machismo

Por Júlia Teixeira e Tainá Rodrigues*
Em março de 2025, a plataforma Steam lançou um jogo chamado No Mercy (sem misericórdia, em tradução), em que os jogadores podiam estuprar personagens femininas. A história se inicia com o protagonista flagrando sua madrasta traindo o seu pai, e o gamer é estimulado a praticar chantagem emocional, abuso sexual e a imposição do poder masculino como forma de exercer vingança contra todas as mulheres. Inicialmente, a sinopse trazia incentivos como “se torne o pesadelo de todas as mulheres” e “nunca aceite ‘não’ como resposta”.
Após o jogo ser banido no Reino Unido, Austrália e Canadá, a Zerat Games, desenvolvedora do conteúdo, emitiu um comunicado afirmando que gostaria de uma maior abertura “aos fetiches humanos que não prejudicam ninguém, mesmo que pareçam nojentos”. A plataforma ainda ressalta que o jogo não incentiva práticas de abuso sexual – “isto continua sendo apenas um jogo”.
O debate sobre a violência de gênero ganhou espaço nas redes sociais com a repercussão da série Adolescência da Netflix, que pontua como a internet tem contribuído para a ascensão da masculinidade tóxica e da comunidade incel, que significa involuntary celibates (“celibatários involuntários”, em tradução). Nessa subcultura online, homens culpabilizam as mulheres por sua solidão, incentivando atos violentos que às vezes se concretizam. “Há um movimento mundial de incentivo a uma cultura machista e de misoginia para meninos”, diz Antonio Serafim, professor do Instituto de Psicologia (IP) especializado em neuropsicologia comportamental.
Segundo Serafim, jogos, incentivos e o acesso a imagens de mulheres com configurações erotizadas, associados a uma supremacia machista, estimulam um processo “depreciativo e objetal da figura feminina, configurando a ideia de conquista no sentido de propriedade”.
E não é só um jogo. O excesso de informações das mídias pode se tornar um agravante na formação da personalidade dos jovens, que podem “transpor o mundo do imaginário das redes sociais ou dos jogos para o mundo real”, explica Serafim. “Às vezes, só assistir não provoca satisfação para as áreas cerebrais. Então, a fantasia sai da realidade virtual para a prática. Isso é um passo curtíssimo para que ele comece a transpor pensamentos para uma vítima e para uma determinada situação.”
Em 2024, uma parceria entre o Ministério da Mulher e a NetLab-UFRJ divulgou uma pesquisa sobre o crescimento de conteúdos misóginos em canais do YouTube no Brasil.
O relatório aponta que 42% dos 76,3 mil vídeos analisados, carregam o tema “desprezo feminino e insurgência masculina”, que juntos somam mais de 3 bilhões de visualizações. Isso é particularmente evidente a partir de 2022, quando ocorre um aumento significativo de vídeos com narrativas masculinistas. Predominam conteúdos que disseminam teorias conspiratórias prejudiciais à igualdade de gênero e comportamentos nocivos às mulheres disfarçados de estratégias de valorização dos homens.
Reduzidas a objetos sexuais ou parceiras reprodutivas, as mulheres são avaliadas com notas por sua aparência e descartadas caso sejam gordas, tenham mais do que 30 anos, sejam consideradas feias ou com baixo “valor sexual de mercado”. Além disso, são desumanizadas em imagens humilhantes que as retratam em posições de subjugação.
O estudo constatou que, além de disseminar o ódio contra mulheres e defender sua submissão à suposta superioridade masculina, 80% dos canais misóginos adotam táticas de monetização, como publicidade, espaços de doação e comercialização de itens. Os dados revelam que 52% desses canais têm ao menos um vídeo com propaganda, enquanto oito deles acumularam R$ 68 mil em receita proveniente de 257 transmissões via super chat. Além disso, 28% dos canais oferecem links para sites de financiamento coletivo.
O documento também aponta que há propagandas de mentorias individuais para o “crescimento pessoal do homem”, nas quais certos influenciadores chegam a cobrar R$ 1 mil por esse tipo de atendimento. O conteúdo das “aulas” inclui controle masculino, reafirmação da identidade masculina, como homens devem se portar diante da sociedade e até mesmo quais bebidas devem tomar – como é o caso do “Calvo do Campari”, que ficou famoso ao recusar tomar cerveja com uma mulher em um encontro porque ele só bebia Campari.


Maria Beatriz da Fonseca é advogada especializada em direito da família e sucessão, além de ser pesquisadora na área de direito das mulheres, produz conteúdos sobre política, direitos da mulher, pautas feministas e debates abertos sobre machismo. Ela explica que a solidão masculina vem se alastrando pela sociedade, como uma espécie de epidemia. E um dos principais sintomas dessa epidemia é o aumento de conteúdos misóginos na internet impactando a vida de meninos. Para Maria Beatriz, o problema não está só em rapazes consumirem este tipo de conteúdo e sim em como aplicam os ensinamentos em suas vidas pessoais.
Serafim também afirma que não basta privar o adolescente de alguns conteúdos disponíveis nas mídias digitais, é necessário conscientizá-los. “A gente precisa reformular esse papel de participação e abertura familiar. Trazer esses jovens para uma discussão familiar e monitorar o que eles estão vendo, fazendo e como se posicionam. Eu vejo que hoje as famílias confundem a ideia de autonomia e individualidade com negligência.”
*Com edição de Pedro Malta