Árabes fazendo escola: a USP na mobilidade social do imigrantes

Valorizar a educação foi fundamental para que imigrantes sírios e libaneses e seus descendentes pudessem superar a descriminação e chegar à elite da política nacional 

Reportagem: João Pedro Abdo | Arte: Bárbara Bigas

Fernando Haddad (esq.) e Adib Jatene (dir.): ambos fizeram toda sua formação na USP, onde também tornaram-se professores. Haddad é ex-prefeito de São Paulo e ministro da Fazendo, e Adib Jatene foi ministro e secretário estadual de Saúde – Foto: Ricardo Stuckert (esq.) e Elza Fiúza (dir.)/ABr – Agência Brasil

A população brasileira é composta por pessoas de diversas origens culturais e religiosas. Essa diversidade é fruto, entre outros fatores, de processos migratórios que aconteceram ao longo dos séculos, desde o início da colonização portuguesa até os dias atuais. Os árabes fazem parte dessas populações que migraram de outros territórios e se estabeleceram no Brasil, onde chegaram às universidades e espaços de poder. 

Atualmente, 150 anos após a chegada desses primeiros imigrantes, é comum que sobrenomes de origem árabe estejam presentes entre os principais quadros da política brasileira. Tebet, Haddad, Temer, Kassab, Boulos e Feghali são alguns desses exemplos. 

Para Diogo Bercito, doutorando em História pela Georgetown University e autor do livro “Brimos: Imigração sírio-libanesa no Brasil e seu caminho até a política”, valorizar a educação formal explica a mobilidade social. “Os libaneses investem bastante na educação, fazem questão de que seus filhos estudem e de que entrem em profissões liberais, como direito, engenharia e medicina, que também são profissões bastante valorizadas no Brasil. Isso facilita esse salto, dado em poucas gerações”, conta Bercito.

O povo vem antes, o país, depois

O início do processo de migração aconteceu no final do século 19 e teve diversos fatores considerados determinantes. O primeiro deles é econômico: o Oriente Médio sofreu com o colapso do mercado da seda, e as condições de vida pioraram drasticamente, forçando parte da população a emigrar. Também são relevantes a perseguição a cristãos (libaneses, principalmente) e uma visita feita por D.Pedro II à região, que serviu para que a população local conhecesse o Brasil.

Naquele período, a área onde se estabeleceram Líbano, Síria, Jordânia, Palestina e outros países árabes era dominada pelo Império Turco Otomano, que tinha como capital a cidade de Constantinopla (atualmente, Istambul, capital da Turquia). Ao chegarem ao território brasileiro, os árabes eram registrados como turcos, mesmo que não tivessem partido do local que hoje conhecemos como Turquia. Apesar de equivocado, o termo acabou sendo vulgarmente usado para designar descendentes árabes.  

Conforme explica Murilo Meihy, professor de História do Oriente Médio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as fronteiras nacionais desses países árabes também foram estabelecidas após o início da imigração. “O Líbano e a Síria, por exemplo, só passaram a existir como Estados nacionais na década de 1920, sob tutela francesa, e na década de 1940, como países independentes”, explica. 

Segundo Samira Osman, professora de História da Ásia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), após o fim do Império Turco Otomano, o processo de identificação dessa população com a cultura árabe e com outras designações nacionais ou religiosas variava, o que também aconteceu na população que havia emigrado ao Brasil. 

“Essa oscilação era reflexo do que acontecia no lugar de origem [Oriente Médio]. Enquanto estavam sob domínio turco e, depois, francês, foram criando formas de identidade, e os debates se mantiveram acirrados. Árabe, ainda que amplo e genérico, tem sido um uso mais comum atualmente, com um apelo exagerado de que somos milhões de árabes no Brasil; depois se acrescenta: provenientes do Líbano e, em menor proporção, da Síria”, conta Samira. 

Os hakims uspianos 

Desde a chegada dos emigrados ao Brasil, o número de imigrantes e descendentes que frequentaram a USP subiu bastante já nas primeiras décadas após a chegada dos árabes ao Brasil, na década de 1870, segundo dados analisados pelo professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Oswaldo Truzzi. Três faculdades que viriam a fazer parte dos institutos que compõem a USP (a Faculdade de Direito, a Escola Politécnica e a Faculdade de Medicina) fizeram parte da trajetória dos sírios e libaneses que seguiram a educação formal.

Murilo explica que a chegada às universidades fazia parte de um projeto para que os filhos dos primeiros imigrantes ganhasse notoriedade no Brasil. “Nesse percurso, muitos iam para as instituições de ensino, que são considerados espaços de prestígio social. Isso era possível pois a primeira geração havia conquistado uma certa estabilidade econômica, possibilitando essa assimilação pelos descendentes”, conta Murilo.    

É importante ressaltar que isso não significa uma aceitação fácil por parte da sociedade brasileira. “Foi construída uma ideia de que o Brasil recebeu os árabes de braços abertos, de que nunca houve preconceito. Na verdade, se a gente olhar os documentos da época vemos que muitos deles sofreram bastante por causa da língua, por causa da religião”, conta Bercito.

Para superar a descriminação, além de se formarem hakims (termo genérico para médicos, mas que pode designar “aqueles que sabem, conhecem”), os árabes tinham outros objetivos. “Investiram no movimento associativo e de benemerência (orfanato, sociedade beneficente, hospitais) como forma de serem vistos de forma positiva e com a intenção de contribuir com o país que os recebia”, explica Samira.

Número de descendentes de imigrantes árabes que se formaram nas Faculdade de Direito (em vermelho), Escola Politécnica (em preto) e Faculdade de Medicina (em verde) nas sete primeiras décadas após o início da imigração. Houve um aumento médio de 1.583% ao longo desse período | Fonte: “Patrício: sírios e libaneses em São Paulo”, tese de doutorado defendida por Oswaldo Truzzi, em 1993, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). | Arte: Bárbara Bigas