Damas em xeque: como estão as uspianas em esportes ‘para homens’

Mesmo com maior igualdade numérica, atletas da USP ainda encontram dificuldades em modalidades consideradas “masculinas”

Por Gustavo R. Silva e Ingrid Gonzaga

Às vésperas dos Jogos Olímpicos de Paris, que se iniciam em 26 de julho, a discussão sobre a igualdade de gênero no esporte torna-se mais presente. Prevê-se que esta edição será a primeira na história a garantir paridade numérica na participação de atletas homens e mulheres. Isso, no entanto, não significa que os dois encontram as mesmas condições esportivas em todas as modalidades — sobretudo no cenário universitário.

Dados da Liga das Atléticas Acadêmicas da Universidade de São Paulo (LAAUSP), organização que trata do esporte na Universidade, indicam que, apesar de a USP ter quantidades semelhantes de esportistas homens e mulheres, o número feminino ainda é um pouco menor. No primeiro semestre de 2024, estavam filiados à entidade 1638 homens contra 1238 mulheres. Em porcentagem, os números correspondem a 56,9% e 43,1% do total de 2870 alunos cadastrados, respectivamente.

O cenário de quase igualdade, porém, esconde uma realidade de maiores empecilhos para algumas modalidades em específico. Ainda hoje, garotas devem superar barreiras a mais para praticar esportes com presença majoritária de homens. É o caso das artes marciais — como o judô, o jiu-jitsu, o karatê e o boxe —, rugby e xadrez: todas modalidades que podem ser praticadas na USP. 

Luiza (abaixada) e Thais (em pé) são membros da equipe de judô da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), que reúne atletas de institutos diversos – Foto: Raquel Tiemi/Jornal do Campus

“Quando eu entrei no Judô da FEA eu era a única menina. Foi muito difícil porque é um esporte de muito contato físico. Às vezes eu treinava em um time de dez meninos, então era bem complicado”, afirma Thais Amorim, diretora de modalidade do judô da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA). O time é composto por estudantes de diferentes institutos que não têm quórum suficiente para formar uma equipe própria. Thais conta que iniciou no esporte já na Universidade.

Sua colega de treinos, Luiza Marcon, faixa preta do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), concorda. “Quando entrei na faculdade, não sabia onde ia treinar. Eu estava no bandejão e vi um cartaz sobre lutas na USP. Fui dar uma olhada e tinham dois horários: na Poli e na FEA. Vi uma foto do treino da Poli e tinha uma menina, no da FEA tinham três. Eu falei ‘vou ali onde tem mais meninas’”, relata. Elas explicam que o número de mulheres nos treinos aumentou e que as meninas formaram uma rede de apoio.

“O que me sustenta no judô e que me ajuda a ficar aqui é ter outras mulheres no treino. Nada contra os meninos, gosto muito deles, mas eu não quero ficar me agarrando com homens todos os dias”

Luiza Marcon, faixa preta de judô do ICBIO

Para as atletas, há uma dificuldade em demonstrar que o judô pode ser uma modalidade acolhedora para as mulheres. Thais afirma que tentou convidar algumas amigas para os treinos, mas elas acabam se distanciando pela baixa quantidade de meninas. “Acho que não é para mim, ficar lutando com homem”, dizem.

A diretora da modalidade ainda reforça a importância da rede de apoio para que as meninas compareçam aos treinos. “Todo mundo tem uma vida meio corrida, então, às vezes você vai priorizar outra coisa do que vir para o treino para ser derrubada no chão por um cara de 1,80m e 100 kg”, afirma.

Hoje, com o apoio das mulheres que comparecem aos treinos, Thais se vê mais motivada a evoluir no esporte. “Eu entrei faixa branca, era minha primeira vez treinando. Depois de mim, entraram duas meninas, uma faixa marrom e uma preta, muito melhores do que eu, que podem treinar e me dar uma consultoria. Com essas inspirações, consegui fazer o exame para mudar para a faixa azul”, conta.

Mas ainda com o cenário em avanço, o número reduzido de mulheres gera impedimentos até mesmo financeiros. A diretora do judô da FEA relembra uma ocasião em que não pôde enviar uma das atletas para um campeonato em outra cidade, pois os custos do torneio eram muito altos e não valeria a pena para a atlética bancá-los para apenas uma garota. A equipe masculina, no entanto, teve a oportunidade: com mais homens, o custo foi dividido entre os atletas, que puderam ganhar mais experiência em competição.

Peças menores

Esse tipo de preconceito não se restringe a esportes que exigem força física. Esportes intelectuais, como é o caso do xadrez, passam pelo mesmo problema. Um estudo publicado em 2019 pelo Grande Mestre australiano David Smerdon indica que a porcentagem de mulheres no xadrez brasileiro varia entre 15 e 20% do total de praticantes. Gabi Scarpini, do Instituto de Matemática e Estatística (IME), é enxadrista. Começou a jogar xadrez aos sete anos, mas só entrou no mundo das competições em 2022. 

“Ser mulher dentro do xadrez é uma coisa complicada, já que é um esporte majoritariamente masculino e viver em um ambiente cercado de homens é sempre difícil”, conta ela. “É nítido como os homens te enxergam como um oponente mais fácil. Até quem não entende nada de xadrez tem essa visão das mulheres. Pelo xadrez ser um jogo intelectual, os homens pressupõem que as mulheres são inferiores nesse aspecto”.

A garota afirma não sentir um preconceito tão forte no IME como em outros lugares que frequentou. Ainda assim, relata que são poucas as mulheres na equipe em que treina — um reflexo, segundo ela, da baixa quantidade de mulheres no próprio instituto. Ela também conta que, quanto mais velhos os oponentes, maiores as chances de ser subestimada pelo seu gênero.

Gabi reconhece a importância de se ter um time consolidado com a presença de meninas. “Acho importante ter mulheres nas equipes porque isso incentiva outras mulheres a entrar”, diz “Nós, mulheres, sabemos como é chato viver em um ambiente onde só tem homens. Saber que vai ter pelo menos uma mulher ali te incentiva a participar mais dos treinos”.

“Tem certeza? Isso não é coisa de menina!”

Os obstáculos enfrentados pelas atletas não são exclusivos do ambiente universitário. Mesmo para quem começou a trajetória no esporte antes de chegar à USP, os primeiros passos foram complicados. “Minha cidade é bem conservadora, então as meninas são colocadas preferencialmente para fazer balé ou ginástica, e não esportes de contato com meninos”, afirma Luiza, que é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul.

A atleta contou com o apoio da família — seu pai e sua irmã mais nova estão no mesmo esporte — e de instrutores, que a auxiliaram no processo de conquistar a faixa preta pela Federação Gaúcha com a segunda melhor nota do Estado. “Geralmente as melhores notas eram sempre de meninos, até porque tinham poucas mulheres fazendo prova para a faixa preta. Mas naquele ano em específico, as duas melhores notas foram de mulheres. Foi um feito bem grande para a gente”, diz. Hoje, Luiza é árbitra nacional de judô.

Gabi também enfrentou obstáculos no xadrez antes da Universidade. “Por ser um esporte intelectual, assim como engenharia, matemática e coisas de lógica, o xadrez é considerado algo de homem. Já ouvi muitas vezes da minha família que xadrez é coisa de homem e dama é coisa de mulher, justamente por xadrez ser muito mais complexo do que dama”, explica.

Thais relata que, mesmo que em alguns casos não seja dito diretamente que determinados esportes são para meninos, a ausência de visibilidade para mulheres acaba fomentando a ideia de que não é algo para elas. “A gente começar a ver meninas cada vez mais incríveis, competindo mundialmente, em esportes que às vezes a gente nem conhecia, muda nossa mentalidade”, conta.

No embalo dos Jogos Olímpicos de Paris, as atletas citaram a importância de assistir as atletas brasileiras não só pela televisão, no momento da competição, mas também acompanhá-las nas redes sociais, entendendo a rotina das atletas. “Você vê todo o treinamento por trás e pensa: ‘Ela faz como eu. Se ela chegou lá, talvez eu também consiga’”, afirma Luiza.