Depois da minha morte, encontrei meu descanso na USP

Túmulo de ex-professor em frente ao prédio da ECA

A pedido de membros falecidos da comunidade universitária, cinzas são enterradas e espalhadas pelos campi; conheça histórias 

Por Ingrid Gonzaga, Julia Estanislau e Mariana Rossi

Quem anda pela USP pode não imaginar que ali não residem apenas vários estudantes, alguns animais e muitos insetos. Há, também, aqueles que já partiram, mas por uma conexão tão forte com a Universidade, decidiram ficar ligados à ela por toda a eternidade.

“Como era seu desejo, suas cinzas deveriam permanecer no Instituto [Oceanográfico da USP] (IO) e foram, então, utilizadas no plantio de um ipê amarelo, localizado no jardim na entrada do prédio”, conta Fabiano Attolini, doutor em Oceanografia Biológica pelo mesmo Instituto, sobre seu amigo Valter Kasuo Miyagi, falecido em 2022, aos 62 anos.  

Analista de Sistemas no IO e graduado em biologia, Miyagi já estava no instituto quando Attolini entrou, em 1988. Foi uma das primeiras pessoas com quem teve contato quando começou a estagiar. À época, era técnico do Departamento de Oceanografia Biológica (DOB). Trabalharam na mesma sala por mais de 10 anos, até Miyagi migrar para a área de informática. 

“Sempre me ajudou bastante. Não só no estágio, mas também depois quando iniciei a pós-graduação. Muitas vezes deixava as coisas dele de lado para atender às necessidades dos outros”, conta Attolini, que atualmente trabalha no Museu Oceanográfico do IO.

Ele diz que Miyagi tinha um jeito “meio tímido mas era bem brincalhão”, e que adorava estar entre amigos e tomar café da tarde em algum laboratório. “Sua identificação com o IO era total, demonstrada pela sua dedicação ao trabalho e simpatia com todos. Não à toa, tinha amigos em todas as salas e departamentos. Sua perda foi muito sentida por todos do Instituto”. No ano passado, o diretor do IO Paulo Yukio Gomes Sumida, que também era amigo de Miyagi, fez uma pequena cerimônia em homenagem a ele, com o plantio da árvore com suas cinzas.

Legado

Escolher o lugar em vida para ter suas cinzas depositadas é um desejo comum, principalmente quando se trata de locais onde a natureza é mais presente, como no mar ou em um parque, conta Maria Júlia Kovács, professora sênior do Instituto de Psicologia da USP e membro-fundadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte.

No entanto, a escolha também pode ser de um local importante para o falecido, como foi para Miyagi. “Pode ser um lugar que ele trabalhou, viveu ou que tenha uma relação afetiva muito grande. Mas não dá para generalizar. A criação do vínculo com um local depende de cada pessoa e não necessariamente ela vai querer deixar suas cinzas lá”, explica a professora.

A importância da escolha de um local se baseia na necessidade que muitos têm de acreditar que seus desejos serão atendidos mesmo depois da morte, o que dá à pessoa a sensação de que ela é amada, querida e de que deixa um legado para os familiares e amigos – embora não haja garantia de que o desejo seja, de fato, cumprido.

“As pessoas têm as mais variadas formas de tentar manter seu legado ou de receber uma homenagem depois da sua morte. Escolher um lugar faz os familiares terem um local de visitação e de ritual para lembrar da pessoa querida”, diz a professora, “e as cinzas jogadas trazem a ideia de que, de alguma forma, a pessoa está lá”.

Maria Júlia ainda ressalta um ponto importante. Placas, memoriais, obras e salas com nomes de ex-professores e funcionários que estão espalhados pela USP, assim como a realização de velórios no campus, são uma forma da instituição responder à pessoa que foi importante para a Universidade. Já as cinzas estarem depositadas na USP “prestam uma homenagem ao lugar, ao mesmo tempo em que as pessoas também são homenageadas por ele”, conclui.

Nos jardins da USP

O caso de Miyagi não é isolado. Assim como ele, outras pessoas de diferentes institutos também escolheram a USP como seu local de descanso. Só na Faculdade de Saúde Pública (FSP) são cinco: João Yunes, José Maria Soares Barata, Rosângela Carvalho Gutierrez, Liu Leal e Keiko Ogura Buralli.

Keiko, ou Keikinho, como Ausônia Donato, doutora em saúde pública pela Faculdade, chamava carinhosamente a amiga, foi professora do Departamento Materno-Infantil da FSP. Era especializada em saúde da criança e do adolescente e contribuiu na formação de sanitaristas nas décadas de 1960 a 1990. “Era uma sanitarista e tanto”, recorda Ausônia, que era amiga de Keiko desde os 14 anos. Elas fizeram o ensino fundamental, a faculdade e trabalharam juntas. “Ela gostava de discutir metodologia de pesquisa qualitativa e sempre ajudava os alunos, cuidou muito deles”.

Em decorrência de uma virose no pulmão, Keiko faleceu em 8 de março de 2002. Atendendo ao seu desejo, ela teve suas cinzas espalhadas em um pé de acácia na FSP, já que gostava da planta. A acácia fica perto da entrada pela esquina entre a Teodoro Sampaio e a Dr. Arnaldo, “logo à direita”, informa Ausônia.

A professora tinha tanta gratidão à Faculdade que, durante a cerimônia de cinzas, a mãe dela, já bem idosa, entregou um envelope com o último salário de Keiko ao diretor na época, João Yunes.

O próprio Yunes, que faleceu meses depois, em setembro de 2002, também teve suas cinzas depositadas no instituto, assim como José Maria Barata, reconhecido estudioso da subfamília de insetos Triatominae; Rosângela Gutierrez, que foi chefe do serviço administrativo da Biblioteca da FSP e que faleceu de Covid em 2021; e mais recentemente, Liu Leal, fisioterapeuta e militante na defesa do Sistema Único de Saúde falecida em outubro de 2023.

Também na Escola de Comunicações e Artes há algo semelhante. Antonio Manuel Vieira dos Anjos Faria, conhecido como Birigui, formou-se em jornalismo pela ECA e foi professor no departamento em que estudou. Falecido em 1977, aos 29 anos, pediu “por todo seu amor à ECA” — como escreveu o professor e jornalista José Coelho Sobrinho em memorial publicado em 2001 —, para ter suas cinzas enterradas em frente ao prédio principal da Escola, onde hoje se encontra uma lápide em sua homenagem.

A Prefeitura do Campus da Capital (PUSP-C), por meio da assessoria de imprensa da Reitoria, afirmou que não há um procedimento específico a ser seguido para que cinzas de membros da comunidade sejam enterradas ou despejadas em espaços universitários. É papel da área ambiental do órgão analisar cada caso e o local desejado.