Grupo usa nome USP para vender remédios controlados sem receita 

Comunidade no WhatsApp oferece de drogas tarja preta a atestados falsos. JC conversou com médico que teve dados fraudados

Da Redação

Bárbara Bigas/JC

“Gente, alguém sabe de algo para ajudar a focar?”. A dúvida enviada por um integrante de  um espaço de venda de remédios por WhatsApp é apenas uma das diversas perguntas que são feitas no grupo nomeado como “Medicamentos Controlados na USP”.

Na rede social, é realizada a promoção da venda de uma série de remédios que precisam de receita médica para serem comercializados, com base na Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998. A desconformidade com essa pode configurar os crimes previstos na Lei nº 11.343, de agosto de 2006, a “Lei de drogas”. 

Na descrição do grupo, é destacado que as pessoas que desejam conferir a tabela com o preço dos medicamentos, que costumam custar o dobro do preço de mercado, devem pedir acesso ao administrador. Entregas presenciais são feitas na Cidade Universitária, no Quadrilátero da Saúde ou na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Para outras localidades, as entregas são feitas por aplicativo ou pelos Correios. Além dos medicamentos, o grupo também promove a venda de atestados médicos, cigarros eletrônicos, receitas brancas e anabolizantes — hormônios com prescrição médica proibida pelo Conselho Federal de Medicina. 

Quando questionado por uma integrante do grupo sobre a venda de MDMA, substância psicotrópica utilizada como droga recreativa, o administrador do grupo, que se apresenta apenas com o nome “Controlados”, relatou que a substância estaria disponível “em breve”.

A reportagem do Jornal do Campus (JC) recebeu um atestado comprado no grupo ao custo de R$100,00. O documento é supostamente assinado pelo endocrinologista Ramon Marcelino, médico pós-graduando em Endocrinologia e Metabologia pela Faculdade de Medicina da USP. A clínica indicada no atestado é a Mar Saúde, Nutrição e Endocrinologia — consultório médico localizado na baixada santista.

Ao entrar em contato com a clínica, o JC apurou que o médico nunca possuiu vínculo trabalhista com o local. Ao conversar com Marcelino, que faz parte do corpo clínico do Hospital Sírio-Libanês, do Hospital das Clínicas e atende em uma clínica própria, a reportagem descobriu que ele não possuía conhecimento sobre o uso do seu nome nos atestados. “Esses casos têm sido recentes. Eu tenho alguns amigos que já passaram por isso.”, relata Ramon, indicando que faria um Boletim de Ocorrência sobre a falsificação. 

A assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informa que esse é o procedimento indicado para casos como esse. Após a denúncia, é iniciado o processo de investigação pela Polícia Civil. 

Procura 

A busca pelo grupo acontece, na maioria dos casos, pela necessidade de compra dos medicamentos somada à ausência de receituário médico atualizado. Bruno (nome fictício, como os demais deste texto), estudante universitário que já recorreu a grupos similares para a compra de medicações, relata que encontra dificuldade em marcar consultas psiquiátricas por meio do sistema público de saúde por conta da longa lista de espera. 

O preço dos atendimentos privados também o afasta dessas consultas. “O valor da consulta médica em conjunto com os remédios adquiridos costumam ultrapassar o valor dos medicamentos em grupos de venda”, diz. 

O Hospital Universitário (HU), hospital-escola voltado para a comunidade USP, oferece o serviço psiquiátrico como especialidade. A lista de espera para o atendimento, no entanto, também é longa. Helena, estudante que depende do HU para consultas psiquiátricas, relata que já passou cerca de 2 meses sem conseguir uma data para o atendimento. “Infelizmente, quem pede consulta não consegue saber quantas pessoas estão na fila”.  

O JC simulou a solicitação de consultas no setor de psiquiatria do HU entre os dias 10/06 e 20/06, data de fechamento da reportagem, mas não obteve sucesso nas tentativas. 

Ao JC, a assessoria da USP declarou que, em outubro do ano passado, a Universidade tomou conhecimento pelo portal UOL de uma página no Instagram chamada de “Tarja Preta” — que foi desativada após a publicação de uma reportagem —, mas que não tinha conhecimento sobre o grupo de WhatsApp. 

“A questão da saúde mental tem sido uma preocupação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, que tem desenvolvido uma série de ações voltadas a este tema. Uma delas é a criação do programa Escuta, Cuidado e Orientação em Saúde Mental”, declara. 

Aspectos médicos 

Alexandre Loch, médico e psiquiatra pela USP, comenta que a busca por estes medicamentos pode ocorrer por outros motivos, como o uso abusivo. “Há casos do paciente solicitar o aumento da dosagem e ter a receita restringida pelo médico.”

De acordo com Alexandre, frequentemente há o atendimento de estudantes que querem melhorar seu desempenho acadêmico ou concentração através de alguma medicação, evidência da influência do ambiente universitário na produção dos fármacos. Entretanto, sem haver qualquer diagnóstico, os efeitos colaterais podem ser diversos. “A maioria das pessoas que usam Ritalina para concentração, sem terem TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade), ficam ansiosas ou têm crises de pânico, por exemplo.”

Alexandre sugere medidas para reverter esse quadro no ambiente universitário. “É preciso passar nas salas de aula reforçando os pontos e serviços de acolhimento para que as pessoas busquem e sejam ajudadas.”

Aspectos legais 

A venda clandestina de remédios também apresenta consequências jurídicas. Com relação à parte criminal, neste caso, a USP não apresenta nenhum tipo de responsabilidade. “Estamos falando de uma pessoa jurídica, que só tem responsabilidade em casos de crime ambiental, mas não nos de saúde pública.”, diz Daniel Pacheco Pontes, professor da Faculdade de Direito  da USP de Ribeirão Preto. 

No âmbito da discussão jurídica, de acordo com Daniel, existem várias correntes que entendem que não há diferença na penalização da venda dos medicamentos que exigem receita e das drogas ilícitas. A venda de remédio sem receita é passível de pena de 10 a 15 anos, conforme o Código Penal. Já o tráfico de drogas ilícitas, como maconha e cocaína, tem pena de 5 a 10 anos, prevista na Lei de Drogas.

Os organizadores do grupo ainda podem ser indiciados por outros crimes. Nos casos em que há receita médica falsa, tem-se um crime de falsidade documental, com pena que varia de cinco a seis anos, se emitido por hospitais. Caso o documento seja emitido por um médico, há mais uma ocorrência: a falsidade ideológica, com pena de até cinco anos.

Para preservar a integridade e o anonimato dos entrevistados, os nomes foram alterados. Pela mesma razão, a reportagem não inclui os nomes dos repórteres.