Estudante “premiada” por “menor desempenho” levanta questões sobre abuso de poder e métodos avaliativos da USP

por Caio Andrade, Júlia Moreira e Luana Takahashi

No primeiro semestre, uma sala de alunos do curso de graduação em geologia do Instituto de Geociências (IGc) da USP foi surpreendida com a entrega de prêmio à “pior aluna’’ e aos dois “melhores alunos’’ da turma. Baseado nas notas finais, o professor Sênior Joel Sigolo presenteou esses estudantes com livros que, segundo ele, eram uma forma de “estímulo’’.
“Ficou todo mundo em choque, sério, em silêncio. Só o professor rindo’’, contou Beatriz Antunes Yano, que recebeu uma obra de poesias pelo “menor desempenho’’. No ano passado, a aluna enfrentou problemas de saúde e precisou se afastar das atividades acadêmicas, perdendo metade das provas da disciplina lecionada por Sigolo.
O professor pediu para que Beatriz fosse à frente da sala e lesse um trecho do livro recebido, que era de sua própria autoria. A estudante recusou por três vezes a se levantar, até que Sigolo teria dito: “Está com vergonha, então vou ler para ela”. Com raiva, ela disse ter rasgado as páginas da obra após o término da aula. Um colega, então, se ofereceu para escrever uma carta de repúdio sobre o ocorrido e enviar à centros acadêmicos da USP. Dias depois, a manchete “professor humilha aluna” estava estampada nos principais veículos de comunicação do país.
O caso vivenciado por Beatriz não parece isolado. Uma fonte ouvida pelo Jornal do Campus (JC), que preferiu não ser identificada, relatou que teve seu trabalho amassado por um professor da Engenharia Naval da Escola Politécnica da USP. Insatisfeito com os cálculos apresentados pela estudante em uma atividade, ele teria dito uma série de palavrões contra ela e se desculpado pelo WhatsApp em seguida. Em vez da denúncia, a aluna optou por abrir mão do curso e realizar uma transferência interna: “Foi a última gota”.
Com a repercussão do episódio do “prêmio de pior aluna”, Joel Sigolo foi afastado do IGc, em uma decisão conjunta com a direção. A unidade também informou que deu início a um processo administrativo: “Se confirmados os fatos, serão adotadas as sanções cabíveis à luz da jurisprudência universitária’’, mas não especificou quais seriam as medidas. Mesmo com o afastamento, alunos contam que o professor ainda costuma frequentar o espaço. Por meio de nota ao JC, o Instituto disse esperar que o “firme posicionamento institucional adotado possa servir de desestímulo às ações que firam a boa convivência, ética e respeito”.
“Houve imensa distorção no caso. A intenção era estimular o aluno com o ‘menor desempenho’ e não o ‘pior’, pois esses são os reprovados e os que desistiram do curso’’, argumentou Joel, após cancelar uma entrevista com o JC por orientação de sua defesa jurídica. Depois de desculpas públicas, ele disse que algumas pessoas “atiraram para matar, sem dar o direito de contestação e defesa’’. O professor ainda afirmou que não tinha o objetivo de “depreciar”, mas dar uma espécie de recado para que a aluna “não desistisse do curso, pois seria cada vez mais interessante’’.
Como a USP está implicada nisso?
Diante de situações como essa, a qualidade do processo de formação e contratação de professores passa a ser questionada. “Quais são as concepções de educação que estamos promovendo? Que docentes queremos?”, questiona Sung Hwan, psicólogo do Grupo Interinstitucional à Queixa Escolar.
Marciel Consani, professor de Educomunicação na Escola de Comunicações e Artes, explica que a Universidade seleciona os discentes por padrões de excelência técnica, intelectual e de produção. A partir desse modelo, a princípio, não seria possível analisar os valores e atitudes, a começar pela empatia, das pessoas contratadas. Apesar disso, promover discussões parece ser uma das formas para lidar com essas transgressões: “Como a ética é uma questão atitudinal, não é nem de conteúdo e nem de competência, como é que você ensina conduta moral? Não se ensina, se discute”, conclui o professor.
“Se pensarmos pela lógica do cancelamento, a atitude mais apressada que podemos ter é fazer um ostracismo deste professor e dizer que ele não existe mais na instituição. Mas ele também se livra. É importante discutir as condições que levaram este professor a agir de tal maneira. A gente só consegue transformar algo estando e participando daquelas relações”, acrescenta Sung.
O caso do IGc também expõe formatos questionáveis de avaliação com ranqueamento de capacidades e performances. “O que produzimos quando avaliamos somente estudantes? É preciso fazer avaliações contínuas dos métodos de ensino e de aprendizagem. Deveria haver uma devolutiva”, reforça Sung. Para ele, devemos “sair um pouco dessa lógica de medição somente de competências individuais dos alunos, mas avaliar todo o processo e as condições nas quais estão imersos, a fim de promover mudanças nas concepções de sucesso e de fracasso”.
As relações de poder que se estabelecem dentro de uma sala de aula também são fatores importantes a considerar nesses tipos de desvios éticos durante o processo educacional. Para o psicólogo, no caso exposto, “é um homem, com tempo de casa, que expõe uma aluna, por sua vez, mulher, nos primeiros anos de faculdade. Então, tem essa relação de poder estabelecida. Como isso opera dentro de sala de aula?”. Essa assimetria parece facilitar que atitudes como essas aconteçam e, por muitas vezes, passem ilesas se não denunciadas em canais efetivos.
Por meio do conceito de microagressões, ações verbais, gestuais e comportamentais, intencionais ou não, que depreciam ou hostilizam alguém, o psicólogo Sung Hwan comenta sobre a importância de relatar essas violências. “A denúncia não é fácil, e o que os agressores querem é que caia no esquecimento.” Beatriz conta que sua principal motivação para denunciar foi livrar as próximas turmas de passarem por este constrangimento: “Foi um senso de justiça”. Assim, a estratégia adotada foi tornar a carta de repúdio pública antes de levar à coordenação, por desacreditar que fosse ser atendida adequadamente pela Instituição.
Para realizar as denúncias, a Universidade conta com alguns canais, sendo o principal a Ouvidoria Geral da USP, encarregada de acolher e encaminhar queixas para os órgãos responsáveis. Para além disso, Sung comenta sobre a importância dos coletivos acadêmicos dentro do ambiente universitário. “A vivência universitária não pode ser solitária. A USP oferece atendimentos clínicos que podem ajudar, como o programa ECOS, por exemplo. Mas essas não podem ser a única via do cuidado.”
Os coletivos acadêmicos possuem a capacidade de mobilizar as pessoas em prol da causa e trazer luz a casos como este. “É pensar que você não está só e sempre buscar pessoas, colegas, professores de confiança, coletivos e construir redes de cuidado e de ação política”, conclui Sung.