Cenário ballroom batalha por espaço dentro da USP em busca devisibilidade aos grupos minorizados

por Caio Andrade, Luana Takahashi e Maria Fernanda Barros

O ballroom — em tradução livre “salão de baile” —, é um cenário artístico, performático e ativista que surgiu na cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos, na década de 1970. No Brasil, esse movimento se iniciou principalmente nos anos 2000 e, atualmente, é experimentado em todo o território nacional — inclusive, na Universidade de São Paulo (USP).
A cena ballroom é uma festa em que os corpos LGBTQIAPN+, principalmente dissidentes e racializados, são a celebração. Nos bailes, existem diversas categorias, em que famílias ou casas são julgadas por antigos membros do cenário ballroom e animados pelo chanter, uma espécie de comentador e narrador das performances.
As categorias podem ser voltadas para passarela e moda (conhecidas como runway), de comportamento (conhecidas como realness) e as dançantes (voguing). Dentro de cada uma delas, existem ramificações e diferentes maneiras de se expressar e enaltecer as corporeidades e as racialidades dessa comunidade. “Ballroom é uma comunidade que se volta para o corpo enquanto estratégia de guerrilha. É você se colocar na fantasia de ser aquilo que o sistema não projeta sobre seu corpo e assumir a autoria de seu discurso”, diz JP Tourinho, artista do cenário ballroom e estudante de Artes Cênicas na USP.
Ballroom na USP
Quando trazida para dentro da Universidade, a semente da ballroom não encontrou solo fértil em uma USP pouco simpática a corpos dissidentes e racializados. No início, os bailes eram em locais que só a comunidade sabia onde acontecia. “Até porque aqueles corpos estavam fugindo de uma suposta exotificação. Então, dentro do espaço universitário, com maioria branca e cis, cria-se um espaço complexo de desconforto, mas importantíssimo, porque é sob esse desconforto que as coisas mudam”, reitera JP.
Recentemente, a prainha, espaço de vivência estudantil dos alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP recebeu a deputada federal Erika Hilton, anunciada para subir ao palco em uma performance da House of Cabal, casa da cena ballroom nacional.
O responsável por apresentar a parlamentar ao público no evento foi o chanter Eremita, que além de narrador de performances, é estudante de Ciências Biológicas no Instituto de Biociências da USP. A partir de sua vivência como aluno da Universidade, Eremita questiona se o espaço é realmente capaz de receber corpos dissidentes e vê a cultura ballroom como uma ferramenta para viabilizar esse acolhimento.
Com o aumento das discussões e reivindicações por cotas trans na USP, a presença da cena ballroom no campus se torna ainda mais relevante. “Se conseguirmos as cotas trans, como essas pessoas vão ser recebidas? A permanência delas vai ser existente? Ter a ballroom, um espaço com pessoas trans, é muito importante para que elas se reconheçam na Universidade”.
Há também quem só conseguiu entrar no meio acadêmico e profissional graças à ballroom, relata Fênix Zion, ativista, multiartista e integrante da House of Zion. Elu conta que a comunidade pode ampliar as perspectivas de diversos participantes da cena ao promover debates educativos sobre saúde e empregabilidade: “A Ballroom reúne pessoas negras, trans, pessoas vivendo com HIV, indígenas, pessoas em situação de vulnerabilidade social e situação de rua. Cada vez trazemos mais gente para esse processo de educação por meio dos bailes e das casas”.
A recuperação da autoestima dos corpos dissidentes é um pilar do processo de educação da comunidade ballroom. “Através da autoestima, você começa a ter uma perspectiva de vida, a ter certeza que consegue acessar a universidade, aquele emprego e a tentar acessar espaços que até então nunca imaginou acessar”, explica a artista.
Barreiras
A primeira ball na USP aconteceu no ano passado, organizada pelo DCE (Diretório Central dos Estudantes) Livre e o Canil (espaço e fluxo de cultura da ECA). Mesmo com dificuldades para sua promoção, o evento abriu portas para a difusão da cultura ballroom e de seus significados artísticos e de resistência para dentro do Campus.
Uma tentativa de trazer o ballroom para a USP já havia sido feita anos antes, mas ela ficou fadada a não sair do papel. “É muito caro trazer os artistas e pagar a infraestrutura. Na época, o Canil não tinha como arcar’’, explicou Helen Mendes, aluna de Educomunicação e organizadora da primeira ballroom na Universidade. Ela conta que, sem auxílio financeiro institucional, o evento foi financiado pelo Canil e por Lena, da cantina do DCE. Marcos Bulhões, professor e coordenador do curso de Artes Cênicas, também comenta sobre a estrutura burocrática da USP: “Fazemos esse tipo de ação quase como uma atitude de ativismo dentro da própria Universidade, de hackeamento do sistema, e contando com a generosidade das pessoas que vem para cá falar de graça’’.
A ausência de interesse por parte da comunidade USP também parece ser um empecilho para a instalação da cultura. “Falta a gente conseguir acessar esse espaço, de ter interesse dos órgãos da USP, dos centros acadêmicos e também das pessoas para pesquisarem sobre o tema’’, entende Eremita. A inviabilização do movimento também ocorre quando não se considera outras formas de saberes além dos hegemônicos: “É muito importante que a Universidade se abra cada vez mais para saberes que vêm também do corpo e de contextos que não descendem dessa cultura anglo-saxônica, eurocentrada e normativa”, explica Bulhões.
Para Helen, o principal intuito ao promover a primeira ball era aproximar a comunidade universitária dessa cultura. Apesar disso, a organização se deparou com um número reduzido de pessoas da própria Universidade, e o maior público foi externo. “Precisamos de que mais pessoas tenham informação e participem’’, convida a aluna. “Espero que a USP consiga entender, de uma vez por todas, que o ballroom chegou para ficar, e é muito potente. A Universidade precisa ceder para ganhar’’, conclui Fênix Zion.