Um dossiê de memórias, opiniões e experiências de alunos da USP durante a ditadura militar (1964-1985)
Por Paloma Lazzaro e Diogo Silva*
Na USP, o período da ditadura cívico-militar coincide com o estabelecimento de diversas faculdades, escolas e institutos, com a ocupação da Cidade Universitária e sua memória permeia funcionários, docentes e alumni da Universidade. Nos dias 26 e 28 de agosto, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e a Faculdade de Medicina (FM) fizeram a diplomação póstuma de estudantes mortos pela repressão do regime.
As ações integram o programa Diplomação da Resistência[itálico], resultante da colaboração entre a vereadora paulistana Luna Zarattini (PT), a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), a Pró-Reitoria de Graduação (PRG) e o coletivo de estudantes Vermelhecer. O objetivo é reconhecer e honrar os 33 estudantes mortos no período.
Na FFLCH, unidade com maior número de vítimas, 15 estudantes foram homenageados. “Hoje é um dia de reparação. É um reconhecimento pessoal àqueles que tombaram em nome da liberdade, da democracia e da nossa Universidade”, disse o diretor da unidade, Paulo Martins, no evento. Já na FMUSP, o pró-reitor de graduação, Aluisio Segurado, lamentou: “Esses jovens estudantes da nossa Faculdade de Medicina tiveram seus sonhos e projetos de vida prematuramente interrompidos, vítimas da arbitrariedade perpetrada pelo regime ditatorial”.
Primeira década
Washington (Xitão) Adalberto Martins, de 82 anos, estava em seu segundo ano na Faculdade de Direito do Largo São Francisco quando o golpe ocorreu. “A base teórica e científica de uma faculdade de Direito está atrelada à existência de uma constituição. À medida que o golpe rechaça a Constituição de 1946 e passa a governar com atos institucionais, fica muito difícil prosseguir o estudo jurídico de um país dirigido ao bel-prazer dos militares”, diz ele.
O papel da Faculdade nesse momento nacional foi marcado pela dualidade: “O diretor, Gomes Silva, ajudou muito os militares a dar uma casca de legalidade ao que é ilegal. Eu me lembro da dificuldade dos professores darem aula. Tinham policiais nas salas, existiam ‘penetras’ que ficavam de vigia. Era uma perseguição muito grande à política progressista”.
Xitão também integrou a ação política: “Fui convidado pela TV Excelsior para defender Che Guevara ao vivo. Quem fazia oposição era o brilhante vereador Brasil Vita, também aluno da São Francisco”, lembra. “A orientação que a TV recebeu foi que, se ele não estivesse perdendo, o programa continuaria; se nós estivéssemos ganhando, eles tirariam o programa do ar. Não deu outra, tiraram do ar. Eu fui embora, lógico. A polícia estava vindo”. A repressão recrudesceu após o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 69.
Dois anos após se formar, Xitão teve que se exilar na Europa devido à perseguição. “Mataram as lideranças, mataram Marighella, mataram Toledo [Joaquim Câmara, membro do Partido Comunista e braço direito de Marighella], todos os principais membros dessas organizações. Os militares eram instruídos para matar, não apenas prender. Prendiam, torturavam e matavam”.
Xitão e sua esposa, Maria Helena Berlinck, se conheceram no exílio, já que devido à cassação massiva de professores universitários – incluindo seu pai – ela tinha se mudado para a Europa. “A década de 70 para nós é uma memória perdida, é um buraco. Não fazíamos ideia das músicas que fizeram sucesso, cantores, nada. A gente tocou a vida no exílio, mas eu digo que a gente praticava diariamente o esquecimento”, ele diz.
Anos de Chumbo
A professora Janice Theodoro da Silva estudou na USP a partir de 1969 e permaneceu até sua aposentadoria como professora da História. Ela diz que grande parte das vítimas fatais da ditadura eram parte dos grupos de resistência formados entre 1964 e 1968, em geral ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e à Ação Libertadora Nacional (ALN). “O maior número de mortes pela ditadura, no contexto da USP, aconteceu em 1972. O governo militar resolveu ‘cortar as cabeças’. A brutalidade nessa época foi assustadora, muito motivada pela ‘ameaça’ do comunismo durante a Guerra Fria”.
Com o AI-5 em ação, a Universidade se tornou alvo fácil da repressão. “A USP estava no cerne da discussão política. Os policiais do DOPS brincavam que ‘bastava cercar a USP que a esquerda no Brasil acabava’”. Internamente, a perseguição tinha “mecanismos burocráticos, ligados ao direito administrativo, pelos quais se impedia que uma pessoa continuasse dentro da USP”, sendo o principal deles o uso de contratos precários. “Se você tira o dinheiro de uma pessoa, seu emprego, você tira todo o poder dela. Ninguém mais a repeitava”. Era característico da ditadura a busca pela aparente legalidade.
A década de 1970 foi também palco de diversas mudanças artísticas e culturais no país. “A frase da Rita Lee ‘mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra’ é muito revolucionária. Era a revolução de uma sociedade que quer mudar. Eu vejo muita importância no que esse grupo deixou de herança sobre o pensamento e a forma”, afirma Janice. Nesse período paradoxal de efervescência cultural e repressão estatal intensificada, a Lei de Anistia fechou a década em 1979.
Década Perdida
Eugênio Bucci, professor da ECA e jornalista célebre, entrou na USP um ano antes da lei, controversa até os dias atuais. “Tudo tem dois lados ou mais. A Constituinte também. A Anistia foi boa, porque trouxe de volta os exilados. Foi ruim, porque incluiu na sua fórmula os crimes de torturadores, de um modo nebuloso, ambíguo e tácito. Há ângulos diferentes que levam a conclusões diferentes”, opina.
A partir de 1980, a USP passava por uma nova onda de fortalecimento dos movimentos estudantis. “Nós perdemos muitos estudantes e funcionários da USP para a repressão. Entre eles, Alexandre Vannuchi Leme, que morreu na tortura aos 22 anos,e que depois deu nome ao DCE. Eu, quando fui membro da diretoria, fui responsável por registrar a entidade em cartório com o nome dele”.
Enquanto presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto durante as Diretas Já, Eugênio presenciou os efeitos das mudanças nacionais no âmbito universitário. “As organizações do movimento estudantil eram clandestinas. Não podiam atuar publicamente. No entanto, a própria UNE estava saindo da clandestinidade.”
Algumas décadas depois do fim da ditadura, a herança do período é debatida fervorosamente. Janice vê um paradoxo na ascensão da extrema-direita dos últimos anos: “As indagações que a gente coloca são problemas atuais. Existe uma vontade da mitificação das figuras do passado”. Para ela, de um lado, a esquerda eleva a resistência à ditadura a um patamar heróico, isento de nuance; de outro, a direita clama pela volta dos militares, ignorando a pobreza da época.
*Com edição de João Chahad e Gabriel Carvalho