Epidemia de jogos e apostas online: como as ‘bets’ afetam a população brasileira

Acesso fácil e promessa de renda imediato impulsionam busca por ganho financeiro às custas da saúde mental

Ilustração: Gabriela Varão/JC

Texto por Ester Nascimento*

Com atuação irregular desde 2018, as casas de apostas esportivas são um fenômeno em expansão no Brasil. Para regulamentar essa prática, o governo federal promulgou a Lei 14.790/2023 e, em 1º de outubro deste ano, suspendeu as atividades das empresas não adequadas à legislação. Para operar no país, empresas devem cumprir as diretrizes de publicidade estabelecidas pela nova lei, que visam controlar a propaganda excessiva e enganosa de produtos com potencial de dependência. Também é exigida a prevenção às consequências negativas à saúde mental do apostador em virtude de dependência, compulsão, ou de qualquer transtorno associado aos jogos e apostas. 

Perfil dos apostadores

De acordo com o Banco Central, 24 milhões de brasileiros participaram de jogos de azar nos primeiros oito meses do ano. Já o relatório “Futuro das Apostas Esportivas Online,” da plataforma Futuros Possíveis, em parceria com a Opinion Box e Afro Esporte, aponta que 40% dos apostadores on-line são pretos e pardos, 33% brancos e 27% preferiram não se identificar. Quem aposta com frequência geralmente são homens jovens (16 a 29 anos), motivados pelo forte apelo midiático e publicitário.

Quanto ao valor gasto, jovens e pessoas das classes C, D e E, com renda familiar média de R$ 1.087,77 a R$ 3.980,38, apostam até R$ 100 em jogos online por mês. Pessoas mais velhas e das classes A e B, com renda acima de R$ 7.017,64, chegam a gastar mais de R$ 3.000 mensais. Os principais motivos para apostar listados nas pesquisas são o ganho financeiro e a diversão.

“A grande diferença é que antes o jogador precisava se deslocar para o lugar de jogar. Hoje joga no celular, em casa, no trabalho, na escola, na balada. Tem sido devastador”

A**, membro da organização JOG-ANON há 20 anos

Dependência

O aumento no número de apostadores também eleva os casos de compulsão por jogos. A ludopatia, ou transtorno de jogos patológicos, é uma condição médica caracterizada pelo desejo incontrolável de jogar, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Márcia Pilão, psicóloga, psicopedagoga e colaboradora do Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso (PRO-AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, explica que os impulsos de quem sofre desse transtorno são semelhantes aos de dependentes de álcool, tabaco e drogas ilícitas. A psicóloga também destaca o retorno rápido dos resultados dos jogos como fator determinante: “a compulsão nas apostas online tem uma variável associada à possibilidade de uma resposta imediata, muito rápida, e isso faz com que à medida que o apostador compulsivo ganhe, a descarga de dopamina o faça ter um sentimento de bem-estar que o mantém no jogo sem qualquer freio”. 

Além disso, a interatividade da tecnologia favorece a compulsão. “Estamos vivendo uma epidemia de jogos e apostas online. As pesquisas mostram que os motivos que levam as pessoas a apostarem estão associadas à facilidade [de acesso], já que os principais motivos apontados são: 42% por diversão, 25% para aumentar a renda, 17% entretenimento e 6% por vício”, analisa Márcia.

No Brasil, grupos de apoio para jogadores compulsivos existem desde o final do século 20, como a Irmandade de Jogadores Anônimos (JA), que teve a primeira reunião em 1993 no Rio de Janeiro e se espalhou pelo país, com o foco nos jogos de azar populares da época, como o jogo do bicho e caça-níqueis. Contudo, houve  aumento na procura por ajuda ligada às apostas online, segundo R**, da diretoria do Escritório de Serviços de JA no Rio de Janeiro.

“Da pandemia para cá, está ocorrendo uma explosão de pedidos de ajuda e a Irmandade voltou a crescer”, conta. “Não temos estimativas, mas pode-se dizer que cerca de 90% são devido às bets”. R** menciona a diferença de faixa etária entre o público que frequentava as reuniões e o atual: “são jovens entre 20 e 35 anos aproximadamente e até mesmo alguns adolescentes”.

Além de impactos na vida do indivíduo, como endividamento, ansiedade e depressão, a ludopatia afeta também as pessoas próximas, gerando insegurança emocional e psicológica nas relações. Nos últimos anos, as bets elevaram o número de frequentadores nos grupos de ajuda a familiares e amigos de pessoas com transtornos de jogo, conforme relata A**, membro há 20 anos da JOG-ANON, organização que realiza reuniões em vários estados do país desde 2002: “até a pandemia as reuniões eram só presenciais e em média com 4 ou 5 participantes. Com a pandemia começamos a fazer reuniões online, hoje temos 800 pessoas de diferentes estados.” 

Ainda segundo A**, o perfil dos frequentadores mudou. “Éramos em grande maioria esposas, cujos maridos iam ao bingo, ao bar, jogo do bicho. O advento dos jogos online trouxe outros familiares – mães, pais, namoradas, irmãos”. A** enfatiza que fácil acesso é um problema abordado de forma recorrente: “A grande diferença é que antes o jogador precisava se deslocar para o lugar de jogar. Hoje joga no celular, em casa, no trabalho, na escola, na balada. Tem sido devastador.”

Tratamento

Além de consultas psiquiátricas, é essencial que as pessoas afetadas tenham acesso a sessões regulares de psicoterapia, acompanhamento familiar e participação em grupos de apoio como a JA e a JOG-ANON. A psicóloga e psicopedagoga Márcia ressalta, entre as ações importantes nesse cenário, a fiscalização das casas de apostas para proteger a população e a melhor distribuição dos recursos destinados à saúde. Segundo a Lei 14.790, apenas 1% do valor total que será arrecadado com as apostas é destinado a esse setor e, de acordo com a psicóloga, essa é uma quantia insuficiente para a ampliação e capacitação do Sistema Único de Saúde (SUS) a fim de atender, apoiar e tratar as pessoas impactadas.

“Os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD) não possuem competência técnica nem estrutura física necessárias para lidar com esse transtorno. É fundamental transformá-los em CAPS ADJ – Álcool, Drogas e Jogos”, completa Márcia.

*Com edição de Fernanda Zibordi

**As iniciais foram utilizadas para proteger a identidade e privacidade das pessoas entrevistadas.