Membros da velha guarda do Sintusp relembram sua história
Escrito por Diego Facundini*
No coração da Escola de Comunicações e Artes (ECA), atrás do prédio da nova reitoria, algumas colunas e um teto formam o esqueleto de uma velha estrutura, poluída de materiais de construção diversos e pela poeira de paredes arruinadas. Ao vê-la hoje, espiando por cima da barreira que cerca o espaço, é difícil imaginar que ali, por décadas, ergueu-se o epicentro da luta trabalhista na universidade: a primeira sede do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp).
Construído em 1969, o local abrigou a organização por quase 50 anos, desde antes dela ser, oficialmente, um sindicato. Em 2016 teve que ser desocupado, quando um ofício com ordem de despejo emitido pela Reitoria iniciou uma batalha de quase um ano entre os trabalhadores e a administração da universidade. “Lá era um lugar bem mais central. Chegava o horário do almoço, ficava cheio de funcionário, e iam pra lá pra conversar ou pra procurar o sindicato mesmo” conta Magno de Carvalho, liderança de longa data do Sintusp,. A nova sede, é um discreto prédio térreo nos fundos do campus Butantã, conquistado apenas após muitas mobilizações e com o envolvimento do Ministério Público do Trabalho.
À época, o evento foi visto como um ataque direto ao movimento sindical na USP. Ecoava a declaração do então reitor, Marco Antonio Zago, em entrevista à Veja em 2014: “é preciso abandonar a dinâmica de sindicalismo na vida universitária”. Segundo Carvalho, “a proposta dele [o reitor] não era vir pra cá, era tirar o sindicato da Universidade”. O episódio é apenas um de vários vividos pela organização que, em 28 de outubro, dia do Servidor Público, completou 36 anos, com uma história que, na verdade, começou há ainda mais tempo.
A ASUSP
Fundada em 1964, a Associação de Servidores da USP (Asusp) foi a primeira a ocupar o prédio na prainha da ECA. Nos primórdios, a entidade não tinha caráter sindicalista. Era a Ditadura Militar, e, desde 1937, servidores públicos eram proibidos por lei de organizarem-se em sindicatos. Na prática, a Associação tinha algumas poucas funções, dentre elas, um sistema de empréstimos a sócios e um precário serviço odontológico.
Magno de Carvalho, ex-dirigente do sindicato e aposentado, começou a trabalhar na ECA como técnico e cinematografista em 1977, ingressando na militância pouco depois; ele conta que o então presidente da Asusp, quando indagado sobre convocação de uma assembleia para discutir um reajuste nos salários, reagiu de maneira adversa: “começou a gritar dizendo que assembleia era coisa de comunista e que era uma coisa absurda o trabalhador querer discutir o próprio salário, quem tem que discutir o salário é o governo”.
Nesse contexto, um movimento de oposição começou então a surgir na clandestinidade e ganhar espaço na Associação. Carvalho conta que “meia dúzia de pessoas” se juntavam em reuniões durante o horário do almoço sob uma árvore no estacionamento da História, discretas de forma a não chamar a atenção dos órgãos de repressão.
Conseguiram um mimeógrafo e logo começaram a distribuição de boletins. “Até na reitoria, a gente ia até o último andar, jogava os papeizinhos debaixo da porta, chutava com o pé e saia correndo. E de manhã muito cedo, 6 horas da manhã”, conta. “Uma dificuldade enorme porque a gente não podia ser pego distribuindo boletim. Era preso, e podia ser torturado”.
Nos boletins, constava uma proposta de reajuste salarial de 70%, para cobrir a inflação galopante da época, mais um acréscimo fixo de CR$ 2.000, que fazia muita diferença para as pessoas no piso salarial da Universidade – em março de 1979, por exemplo, o gasto mensal da Cesta Básica era de CR$ 1.107,51. A ideia era diminuir a disparidade salarial, “não achatando o de cima pra baixo, mas empurrando o de baixo pra cima”.
A movimentação conseguiu organizar assembleias expressivas e desembocou em uma greve, inserida no contexto do movimento de funcionários públicos de 1979. No final, o governador Paulo Maluf, que geria diretamente os salários universitários na época, aceitou acatar metade do pedido: não haveria o reajuste percentual, apenas o fixo.
A vitória da greve obrigou que uma nova eleição fosse convocada na Asusp. O movimento de oposição ganhou o pleito, extinguiu o sistema de empréstimos e conferiu à organização um caráter cada vez mais sindical e classista: “A gente entende que temos que lutar contra o corporativismo”, afirma Carvalho. “Sempre defendemos que temos que unir a classe [trabalhadora]”.
O SINTUSP
“A função permanente do sindicato é a assistência e defesa dos funcionários que sofrem perseguição, injustiça e têm seus direitos negados ou espezinhados pelos chefes. Todo ano temos que negociar e renegociar o chamado Acordo Coletivo de Trabalho que estabelece alguns direitos que não estão previstos em lei”. A fala é de Claudionor Brandão, outro importante dirigente da história do sindicato.
Brandão foi contratado como supervisor de seção na área de manutenção de refrigeração e ar-condicionado em 1987, e começou a ganhar relevância na militância no ano seguinte, durante a greve da Unidade de Referência de Preços, outra mobilização geral do funcionalismo, que reivindicava reajuste salarial em meio à hiperinflação. “Aí eu descobri que era um agitador chato”, brinca. “Acabei, apesar do cargo, assumindo uma condição de direção da greve na Prefeitura do Campus”.
Entrou em um momento chave: pouco depois, a constituição de 1988 seria promulgada, garantindo o direito de sindicalização e greve a servidores públicos, e, no mesmo mês, a Asusp se transformaria em Sintusp. Carvalho conta que já se preparavam antes para esta transição: “Sabíamos que ia sair [o direito à sindicalização] e portanto nós estávamos com tudo prontinho, tanto que o primeiro sindicato de servidores públicos do Brasil a transformar associação em sindicato foi o nosso”.
Para quem já leu qualquer boletim mais recente do Sintusp, o nome de Brandão não é estranho; no rodapé de todos lê-se “Reintegração de Brandão e retirada dos processos!”. Ele é descrito pelo sindicato como demitido político, expulso em 2008 após uma série de processos que, conta, “contiveram pelo menos cinco irregularidades”. Hoje, está em último recurso, recebe do sindicato o equivalente ao que seria seu salário e diz que, “na verdade, eu perdi um pouco a ilusão com isso”.
Sua reintegração foi uma das pautas da greve de 2009, que teve, entre suas maiores reivindicações, a manutenção dos empregos de funcionários da USP que ocupavam vagas irregulares criadas pela reitoria. A greve garantiu que 5214 cargos fossem regularizados sem a necessidade da prestação de um novo concurso público.
Foi uma das paralisações mais importantes de uma década de lutas que teve, em seu primeiro ano, uma greve que unificou funcionários, estudantes e professores contra um projeto de lei que buscava implementar a cobrança de mensalidade. Foi aí, em 2000, que Neli Wada, hoje uma das lideranças mais proeminentes do sindicato, começou a militar, defendendo a universidade “pública, gratuita e de qualidade”.
Wada ingressou na USP há 40 anos como assistente social no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC). Na greve de 2014, ela esteve na linha de frente contra o projeto de desvinculação do Hospital Universitário (HU) e do HRAC, feito na administração Zago. Segundo ela, o projeto foi discutido “sem a participação da comunidade dos dois hospitais”. A greve conseguiu manter o HU, mas não o hospital de Bauru, que hoje é administrado pela Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência (FAEPA), de caráter privado.
O SINDICALISMO
O prognóstico para o movimento sindical no Brasil também não é favorável – na realidade, é uma queda vertiginosa. Em 2023, segundo o IBGE, os trabalhadores sindicalizados atingiram o menor número desde 2012 – 8,4% dos mais de 100 milhões de ocupados – em meio a um cenário nacional de precarização do trabalho.
Para o Sintusp, não é diferente. O avanço da terceirização na Universidade e as perdas de funcionários pelos Programas de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDVs) tem causado redução drástica nos quadros sindicais.
Hoje, o sindicato tem pouco mais de dois mil sócios – perdeu quase metade da composição. Para sobreviver financeiramente, o Sintusp aprovou neste ano a Contribuição Negocial, uma taxa de 1% a ser cobrada dos salários de outubro e novembro de 2024 e março e abril de 2025 de não-sócios da USP, e que pode ser contestada.
Para Carvalho, a principal razão para a crise são as mudanças nas relações de trabalho e o aumento da informalidade. “A minha maior luta hoje é para convencer os meus companheiros sindicais que nós temos que nos juntar com essa juventude, com essa turma que está alijada do emprego”.
Brandão opina: “o futuro dos sindicatos está por vir. Sem um ascenso operário, a tendência é eles continuarem cada vez mais desacreditados. Uma ferramenta de luta em um período em que não tem luta não serve para nada. No momento em que a razão de sua existência se apresenta, aí ele pode voltar a cumprir papel determinante”.
“Estamos meio parados”, Wada confirma, “mas não por falta de coragem”.
*Com edição de Marcelo Teixeira