USP atrás na corrida das cotas

Enquanto isso, outras instituições públicas avançam na discussão das políticas afirmativas

Arte: Lara Soares/JC

Texto por Diogo Silva e João Chahad*

As cotas para pessoas trans incendiaram o debate universitário nos últimos meses. Em setembro, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) anunciou que irá implementar as cotas trans para graduação e pós-graduação. Em outubro, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB), pioneira nacional nas cotas raciais, tornar público como será o processo de efetivação da medida em seus cursos de graduação. Enquanto isso, a USP ainda não demonstrou acenos concretos para reavaliar o modelo atual de entrada na instituição, e novamente larga atrás na discussão desse e de outros temas.

A Lei de Cotas foi instituída pelo Governo Federal em 2012 e modificada ao longo dos anos. Anteriormente, a decisão da implementação era própria de cada instituição, que avaliava as políticas afirmativas ideais. As universidades federais foram obrigadas a rever seus modelos de inclusão com a chegada da norma. A reserva de vagas para o ensino superior era limitada aos estudantes de escolas públicas, mas marcadores sociais de renda, raça, etnia e deficiência foram adicionados ao longo dos anos. As instituições ainda têm autonomia para acrescentar medidas que complementam o regulamento nacional.

Porém, a lei não toca na decisão de instituições estaduais, como a USP, Unicamp e Unesp. Isso fez com que o ritmo de aplicação dessas medidas fosse descompassado em relação às instituições federais como a Unifesp e a Universidade Federal do ABC (UFABC). No entanto, a USP possui um histórico de resistência com a aplicação das políticas de cotas maior que as das outras duas estaduais.

Luta por existir

A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi a primeira instituição a aderir às cotas trans na graduação, ainda em 2017. Em São Paulo, foi a UFABC, em 2019, a pioneira. Mesmo sob um regimento nacional, as federais ainda possuem autonomia para adicionar novas medidas nas políticas internas. Isso garantiu que a proposta fosse alcançada por 11 federais. A deputada Erika Hilton (PSOL) apresentou o PL 3109/23 para adicionar à lei a reserva de 5% das vagas para pessoas trans e travestis. O projeto ainda passará pela Câmara e pelo Senado.

Desde o ano passado, a Unicamp é a única estadual paulista a afirmar que integrará a medida para a admissão própria, como resposta à greve estudantil que durou vinte dias em outubro de 2023. O movimento conseguiu ainda cotas para Pessoas com Deficiência (PcDs), aprovada por unanimidade no final de setembro deste ano. A USP ainda não afirmou se irá aplicar alguma dessas medidas. 

O DCE Livre da USP organizou, junto com a Coletiva Xica Manicongo, a caravana pelas cotas trans. Ekop Novis, estudante da Faculdade de Direito e parte da organização, afirma que a reivindicação “ainda tem uma grande resistência”, tanto pelo corpo discente quanto pela Universidade. Ela relata que conversou com o reitor Carlos Carlotti durante a greve do ano passado, mas “ele se negou, dizendo que não era o momento de discutir cotas trans”. Ekop ainda diz que a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) “parecia perdida, não sabia o que estava fazendo ou sem um plano de ação.”

A proposta da caravana, segundo Ekop, é “criar um caldo político para pressionar a Universidade e trazer a importância de se movimentar agora”. A estudante de direito diz que o modelo ideal ainda não é consenso entre o movimento estudantil, mas que novas discussões estão agendadas. Em resposta, a USP afirma que “será criado um grupo de trabalho para discutir o tema.”

Para Juliana Altino, no entanto, a luta na USP pela reserva de vagas para PcDs não passa pela mesma sorte. A fundadora do Coletivo Defiça Laureane Costa afirma que “enquanto não tiver cotas, fica mais difícil dizer que nós existimos.” Pessoas com Deficiência foram incluídas na Lei de Cotas em 2016, mas apenas uma das grandes estaduais em São Paulo aderiram ao modelo. 

Juliana diz que a força popular seria um grande impacto nas conquistas dos grupos PcDs. “Durante a greve não era algo batalhado, a gente é invisibilizado dentro do próprio movimento estudantil. Se não tiver pressão da comunidade universitária, a gente não vai conseguir muita coisa”, afirma. Ela completa dizendo que a falta de dados sobre a quantidade de Pessoas com Deficiência na Universidade contribui com a invisibilização desses indivíduos. “Sempre tem aquilo de diminuir essas pessoas e a quantidade delas. Tem muito mais gente com deficiência aqui dentro [do que o registrado].” Perguntada sobre a aplicação de cotas para PcDs, a USP preferiu não responder.

Debate ético-racial

As cotas raciais na USP têm pouco mais de 5 anos, e as mudanças já são visíveis. Das 10.743 vagas preenchidas no vestibular da Universidade de 2023, 5.954 foram destinadas para ingressantes que cumpriram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). Segundo nota publicada pela instituição, do total destinado à política de ações afirmativas, 2.965 eram estudantes PPI, o que corresponde a 27,6% da reserva de vagas.

Perguntada sobre a demora da adesão ao sistema de cotas, a USP afirmou que, anterior à reserva de vagas, o vestibular garantia um adicional de pontos aos estudantes na primeira fase em 2006, o INCLUSP. A então colaboradora do Núcleo de Consciência Negra da USP, Maria Menezes, afirmou ao JC em 2014 que esse modelo “apresentou um desempenho bem aquém do esperado.”

No começo desse ano, Alisson Rodrigues foi aprovado no vestibular em Medicina, mas teve a validação de sua matrícula indeferida pela banca de heteroidentificação por “não possuir conjunto de traços fenotípicos apto a defini-lo como preto ou pardo”. A avaliação resultou em uma ação contra a Universidade, encerrada em setembro com vitória do estudante, que continuará no curso. 

Para Giovani Paiva, participante do Levante Indígena da USP, o sistema atual merece uma reavaliação. “O Anuário estatístico da USP demonstra que, após a implementação das cotas PPI, o acesso indígena diminuiu, pois passamos a concorrer com pretos e pardos, sem reserva de vagas [específicas].” Fundado em 2016, o movimento foi criado com a política de cotas como pauta central, por meio da criação de um vestibular indígena. Unicamp e Universidade Federal de São Carlos já aderem a esta forma de ingresso desde 2018, e hoje, “ostentam um grande número de estudantes indígenas em várias áreas”, como completa Matheus Median, também do coletivo. Questionada pelo JC, a USP reafirmou a reserva de vagas para pessoas indígenas pelo sistema PPI, mas não citou nenhuma pesquisa sobre a aplicação de um vestibular exclusivo para pessoas indígenas.

Resistência

O professor da Escola de Comunicações e Artes, Dennis de Oliveira, foi aluno de graduação da USP na década de 1980, e comenta como viu a Universidade mudar de rosto. “Na minha turma de Comunicação Social, dos 85 alunos, apenas três ou quatro vieram de escola pública e apenas dois eram negros”. Ele complementa que a universidade sequer era pensada para esses alunos, “o período noturno quase não funcionava nada, o circular era muito ruim, assim como as demais linhas, e não havia metrô próximo.”

A luta para a conquista das cotas raciais na USP vem de décadas. Segundo Dennis, no final dos anos 90, coletivos negros já levantavam essa bandeira. “[2013] era o auge dessa luta, já que as cotas nas federais foram implementadas no ano anterior”. A partir daí, deu-se inicio a um intenso trabalho dos coletivos negros. “Eu, junto com outros colegas professores negros, participei de diversos debates com diretores, professores, alunos e funcionários da USP. Foi bem difícil, ouvi desde a retomada de pensamentos eugenistas, à defesa de uma meritocracia vazia e até [a defesa da inação] por ser uma universidade de excelência para as elites.”

Segundo dados de 2023 do Censo da Educação Superior, 51% dos alunos cotistas concluíram o curso, enquanto a conclusão entre não cotistas foi de 41%. Entre quem utiliza o Fies, a conclusão da graduação foi 49%, ante 34% dos que não utilizam. Já em relação ao Prouni, o índice foi de 58%, contra 36% entre estudantes que não têm o suporte.

Ekop Novis afirma que “qualquer mudança estrutural na composição da universidade vai ser recebida com muita resistência, pois é um lugar que foi criado para afastar essas pessoas.” No final de 2023, com a revisão da Lei de Cotas, pessoas quilombolas foram adicionadas ao sistema federal, algo que ainda não foi implementado por nenhuma universidade estadual. Surge então uma nova oportunidade para a USP ganhar posições na corrida pelas cotas entre as principais instituições do estado.

*Com edição de Nicolle Martins